Em Maio de 1973, depois de um mês de férias no “Putu” (Portugal), o pequeno avião que me transportava da cidade de Luanda para a cidade de Henrique de Carvalho (Saurimo), devido a um valente temporal, foi desviado para a cidade de Silva Porto (Kuito).
Não me lembro muito da cidade.
Sei que pernoitei, sem luxos, no pequeno Hotel Girão, perto da casa de uma família a que chamavam de “Meiaonça”.
Ao jantar, o empregado, que dava apoio ao serviço das mesas, acercou-se de mim e muito baixinho, disse:
- Hoje, é a noite da mulher nua! São 50 angolares, ida e volta!
- Obrigado, mas já vi disso nos bares de Luanda.
- “Cá”! Não é isso, não! Esta é festa na sanzala, da boa, é dança de preto, mesmo!
Efectivamente, numa noite muito escura e carregada de nuvens, fui encontrar um espectáculo raro, curioso e sério.
Chamavam-lhe a dança das mulheres de fogo.
Na sanzala reinava um intrigante silêncio, entrecortado a espaços por vários e misteriosos ruídos, sem origem definida, parecendo os fantasmas errantes do imaginário das mentes de um povo residente na selva.
De um lado, havia tocadores de gomas e tchinguvos (tambores), ágeis e fortes nas suas pancadas, e do outro lado, vários tocadores de quissange (instrumento de palhetas) com sons e melodias muito doces, dim-dom-dim. Ao centro, alguns homens com vozes roucas, em coro forte e ritmado são acompanhados por um coro de vozes femininas.
Mais longe, na selva, num lugar indeterminado, um outro grupo de mulheres, responde entoando sons e cantares parecidos.
Momentaneamente, os tambores começam a tocar muito fortes e apressados… puum, puum… puum, puum, as vozes dos homens tornam-se mais claras e precisas e lá ao fundo na selva no negrume da noite dispara um outro coro de vozes femininas… é tudo empolgante, e, ao mesmo tempo, arrepiante.
Acreditem! Aqui, começa o deslumbramento total.
Surgem chamas e faúlhas de todos os lados, iluminando a noite, e as mulheres até aqui escondidas, aparecem nuas, completamente nuas, envoltas, nos pulsos, nos tornozelos e na cintura, com um material herbáceo a arder e a produzir uma chama azulada.
As atitudes, o fogo, os bailados, os cantares e os sons, dos chocalhos, das argolas, dos gomas, dos tchinguvos e dos quissange, formavam uma beleza rítmica impressionante, ao ponto de até o ar parecer fosforescente e fantasmagórico.
Estávamos ao ar livre a presenciar um cenário natural… e a viver momentos de uma arte maravilhosa com origens muito primitivas.
Porque era tabu, as mulheres de fogo, sempre visíveis, e também ao nosso alcance, não se aproximavam dos homens mas insistiam nos movimentos sensuais e num bailado de um profundo orgasmo, como estivessem a ser possuídas por uma divindade da dança.
Esta dança, admirável, envolvente e tão estranha, em conjunto com o fogo e os sons, glorificava a nudez sem complexos e a criação da vida.
A seguir - Batuque dos Muquixes
Carlos Alberto Santos