A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 06.02.10 às 01:08link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


Jean de La Bruyére disse: “a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”.

 

Para mim, a vida deve estar entre o sentir e o pensar, entre a tragédia e a comédia, porque só sentindo uma tragédia, saberemos o que é uma comédia, só estando envolvido entre risos e gargalhadas, saberemos o que é o mais triste dos dramas, só sentir não basta, só pensar é insuficiente…
 

Foi sem grandes risos ou pensamentos, que vivi durante dois anos e meio, entre 1972 e 1974, num mundo diferente, cheio de mistérios, de valores, de usos e costumes muito primitivos, numa região isolada muito pobre onde se travava uma luta constante com a natureza para a sobrevivência, e onde a mulher, paciente e activa, tomava conta de tudo e tinha tempo para ser fêmea e mãe dedicada.


Num raio de 300 kms residiam apenas meia dúzia de europeus.


Durante aquele tempo, senti, que, em silêncio, o povo sofria… com os fantasmas dos feitiços, com a prepotência dos chicotes dos cipaios, com a ignorância do colonos a cilindrarem tradições, com os militares a destruírem resistências e com a administração colonial a deslocar estrategicamente as aldeias.
 

Em 1975, depois da chamada guerra colonial ter terminado, vivíamos uma época em que muitas pessoas se interrogavam sobre o que efectivamente tinham feito os portugueses em África, onde os heróis já tinham caído com o rolar das estátuas, o arrear apressado da nossa bandeira sem uma digna passagem de testemunho, o abandonar de um povo a uma guerra civil e a realidade, ignorada pela revolução dos cravos, Generais Spínola e Costa Gomes incluídos, da aliança secreta anteriormente estabelecida entre Portugal, África do Sul e Rodésia para o plano de defesa para a África Austral denominada Exercício Alcora ou PAPO (em inglês), Organização Permanente de Planeamento Álcora, onde Portugal transferia para a África do Sul a capacidade de dirigir as forças militares para terminar com o “terrorismo”.


Publicar estes textos e o documento Tchicapa, o final da viagem, numa época em que toda a actuação portuguesa era posta em causa, não era tarefa fácil. A corrida política e económica para África e o choque entre grandes potências transcende em muito os temas que escrevi, que são a outra face da realidade, a da verdadeira África, que eu, europeu, gosto.
 

 

Prestes a dar por concluída estas breves reflexões, resta-me dizer, que foi tudo projectado para não deixar morrer as nossas memórias, sempre assentes num conjunto de acções e de afectos e sustentadas num passado que naturalmente, importa considerar.


Ao Sá Moço, e a todos, que directa ou indirectamente leram e possibilitaram a apresentação destes textos, obrigado.
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 03.02.10 às 22:56link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Eu gostava de falar com ele. Era um homem do Tchicapa que sabia contar coisas fabulosas sobre a guerra entre tribos, dos primeiros espelhos, de princesas raptadas por homem branco, dos revoltosos em 1961 e dos acontecimentos contra os colonos.
 

Falava-me de pedras com feitiço onde estava gravado o pé da Rainha N’Ginga e dos guerreiros invisíveis que logravam vencer tudo e todos e de tantas coisas que um branco, como eu, vindo de outra civilização, nunca sonhou ser possível.
 

E, também falava da família e dos seus filhos. – Um é assim, o outro assim, dizia ele, alteando a mão do solo, para me explicar o tamanho dos filhos.
 

Mas os seus olhos, perdiam vivacidade e todo o entusiasmo quando me falava do chefe de posto (kaputu) e dos cipaios quando faziam as rusgas na aldeia, durante o tempo das colheitas, e obrigavam muitos a ir trabalhar, debaixo do chicote, dos momentos difíceis durante a permanência dos combatentes da FLNA, e… quase chorava.
 

Depois voltava, a ser o mesmo, a desviar a conversa e explicava-me com todos os detalhes como se vivia no quimbo.
 

Não lhe conheci qualquer tipo de traição, mas era um teimoso, um negociador a favor dos seus e… apoquentava-se abertamente quando as coisas poderiam correr mal.
 

Sá Moço, um companheiro na selva, na guerrilha e no dia-a-dia, também foi, nestes textos, uma denúncia frontal para que não adormeçam as memórias e simultaneamente uma afirmação de esperança e confiança na vida.
 

Alto Chicapa / Angola, uma fonte inesgotável de ensinamentos, de emoções e de mistério.
 

A seguir - Conclusão

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 31.01.10 às 14:29link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


A lua e o sol
A lua era a companheira da noite, do mal, da doença e até da morte. O sol era a luz, o dia, a vida, a saúde e o alimento dos homens na terra.
 

Por este motivo, as conspirações, os acordos, os ditos, as estórias e as lendas, só eram contadas à luz da lua ou de uma fogueira.
 

Cidade de Saurimo
Saurimo deriva de Sá Urimbo, um chefe quioco que habitava aquela área onde foi fundada a cidade, também chamada de Henrique de Carvalho em homenagem ao general português.

 

General Henrique de Carvalho e o Muatianvua Sá Madiamba - Foto obtida, em 1973, de um quadro de 1886, existente numa das paredes da Tasca do Mais Velho (restaurante) na povoação do Cacolo / Saurimo.

 

Sá era título de paternidade dado a todos os homens que eram pais.

 

Depois da independência de Angola a cidade voltou a ter o seu nome inicial.
 

Administrador do Alto Chicapa
Chamavam-lhe o Kaputu.
 

Atitudes
A mão direita era usada para comer, para cumprimentar, oferecer, receber e para todos os actos de rotina, enquanto a mão esquerda era reservada para tocar nos órgãos sexuais e para excitar a mulher antes do acto sexual.
 

As pinturas brancas no corpo, com que apareciam muitas vezes, eram feitas com caulino (Pemba), significavam o bem, a verdade, a vida e a saúde.
 

Faziam segredo das atitudes mais intimas, tinham vergonha de gazear ruidosamente ou de satisfazer as suas necessidades fisiológicas se alguém estivesse nas proximidades.
 

Os homens usavam na cabeça, pequenos pentes de madeira (tissaculo?), alguns com arte e gosto.
 

 

Algumas palavras

Lunga           - Homem

Pfwo              - Mulher
Mwana          - Criança
Kanuke         - Moço(a)
Demba         - Galo
Tchari           - Galinha
Zambi           - Deus
Mwalva         - Sol
Kakweji        - Lua
Kai                - Cabra do Mato
Lukutu          - Pénis
Sundji           - Vagina
Meia              - Água
Lwiko            - Colher do pirão
Makoso        - Lagartas comestíveis que viviam na arvore Mukoso
Moyo             - Saudação
Moyo weno  - Saudação com mais respeito
Muata           - Chefe da aldeia
Muatianvua - Nome dado ao imperador do Império da Lunda
Jimbo           - Machado pequeno
Mutopa         - Cachimbo de água

 

 

 

A seguir - Sá Moço

Depois - Conclusão e final

 

Carlos Alberto santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 27.01.10 às 23:52link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Esta imagem, vinda do Alto Chicapa, e que só hoje vos deixo, quase no final dos meus apontamentos, é a de, O Pensador.
 

 

É uma bela estatueta Quiôca (Tchokwe), que representa um ancião. Na Lunda, o idoso tinha (ou tem) um estatuto privilegiado, por representar a tradição, a sabedoria, a experiência dada pelos anos e os segredos da vida.


O Pensador, um símbolo emblemático da cultura angolana, com origem numa tradição convencionada, o cesto de adivinhação, onde o adivinhador (Taí) usava, entre vários objectos, pequenas figuras esculpidas em madeira.


As primeiras figuras de O Pensador foram esculpidas no Dundo, por artesãos locais, no ano de 1947, e por iniciativa de alguns colaboradores da Diamang, a então Companhia dos Diamantes da Lunda.
 

A seguir - Notas soltas

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 27.01.10 às 01:00link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

O homem vivia quotidianamente de uma forma bastante calma. Muita vezes… até deixava transparecer alguma preguiça.


O seu principal objectivo, era ter uma família com o maior número de mulheres. Quantas mais mulheres, mais braços tinha para trabalhar nas lavras e mais prestígio adquiria com o aumento do número de filhos.
 

Para aumentar a sua riqueza, quando lhe era economicamente viável, casava com uma outra mulher, geralmente, mais nova, que a anterior. Era, assim, do trabalho das mulheres, que obtinha os rendimentos, que lhe permitia casar novamente, ter mais filhos e atingir uma posição social na comunidade.


Depois de atingir um certo estatuto e até o título de muata, mostrava-se, fumava muito, bebia e dava passeios em visita aos amigos e familiares.

 


Depois de passar ao grupo dos mais velhos, devido à experiencia de vida adquirida e aos saberes e tradições, era solicitado para dar conselhos e intervir como juiz de partes em conflito.

 


Quando ficava incapacitado, devido à idade, era sempre acompanhado pelos filhos ou pelas mulheres mais novas. Também era durante esta fase da vida, com um conhecimento amplo da comunidade e da vida, que lhe era atribuída, erradamente, praticas de feiticeiro e de ligações a forças sobrenaturais.


Para mim, era com muita dignidade que chegavam ao fim da sua vida.
 

A seguir - O Pensador

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 18.12.09 às 17:38link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

 

O quioco atribuía à infidelidade da mulher, o termo sedução.
 

O adultério, em certas condições, até era bem tolerado, porque era, muitas vezes, o próprio marido que contribuía para a mulher se tornar adúltera, não só por algum abandono declarado mas também pelo proveito material que podia tirar disso.
 

Havia casos, em que homens idosos, rodeados por várias mulheres, duas ou três muito novas, longe de serem a figura do marido ultrajado, aproveitavam-se da situação para aumentarem os seus proveitos, naturalmente, oriundo, delas seduzirem ou deixarem-se seduzir.
 

Noutros casos, o desejo de descendência era tão grande que o próprio marido consentia o adultério e muitas vezes com um homem indicado por ele. Este, porém, não tinha qualquer direito sobre a mulher e nem estava obrigado a entregar qualquer contribuição material.
 

Na região do Alto Chicapa, para além de um ou outro caso sazonal vindo de fora, não havia comércio sexual, como em Luanda ou em Henrique de Carvalho, havia sim a tal sedução ou até, talvez, um favor recebido sem pagamento predefinido, onde, no fim, entre sensatos, nunca deveria ficar esquecida a troca material pela utilização do corpo da mulher ou… até do homem.
 

A sedução era frequente e quase sempre banalizada, mas não se pense que a moralidade estava ausente, pelo contrário haviam muitos valores de vida, impossíveis de ser avaliados à luz do pensamento e da mentalidade europeia.
 

Nos casos mais complicados, que eram raros, o adultério era encarado como um roubo, e, como tal, o ladrão tinha de indemnizar o roubado com um pagamento em dinheiro, gado ou outros utensílios.
 

Contou-me o Sá Moço, que em tempos, antes de a tropa chegar, havia o costume frequente da troca mútua das mulheres, por uma ou mais vezes, entre dois casais.
 

Efectivamente, passados tantos anos… nada é assim tão diferente.

 

A seguir - A mulher quiôca
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 16.12.09 às 00:35link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Naquela época e na região da Lunda era normal a pluralidade de uniões, em família, de um homem com várias mulheres, onde os mais novos tinham três ou quatro, e os mais velhos, e alguns sobas, chegavam aos dezasseis casamentos.
 

Tive a sorte e o privilégio de conhecer um desses homens, “chefe” de uma grande família e de uma vasta prole, uma autêntica comunidade. Tinha uma idade avançada, era sábio e estava sempre sorridente. Vivia feliz, de uma forma imparável e jovial, parecia ser detentor de um segredo. Era apaparicado, pelas várias mulheres muito jovens, mesmo muito! Dizia sempre a sorrir: - Nenhuma tem razão de queixa!
 

Só por curiosidade, mas em sentido oposto, na região do Luatamba, Moxico, havia alguns casos de poliandria em que uma mulher vivia casada com dois ou três homens. Embora nunca tivesse contactado, de perto, com uma comunidade deste tipo, contavam que o primeiro marido era quem detinha todos os privilégios e direitos, e era, sempre, considerado o pai legal de todos os filhos.
 

Voltando à Lunda. A poligamia era o sistema familiar usual, onde, fosse qual fosse o número de mulheres do polígamo, havia, entre elas, uma, que era a preferida e mais confidente, a principal (muári), que usufruía um tratamento especial na gestão do lar, na vida do marido e no que vestia. As outras, as raparigas (tusula), eram tratadas em pé de igualdade nas relações sexuais, em parte do vestuário, nos trabalhos domésticos e nas lavras.

 


Dos, diversos, contactos, que tive ao longo de dois anos e meio de permanência, na região, percebi que a poligamia, não era só o sexo e os filhos, era o poder económico desenvolvido por cada uma das mulheres, era a aliança entre famílias e era a posição social do homem na comunidade.
 

Durante uma patrulha militar, no final de um dia, entrei em diálogo com o meu bom amigo e guia Sá Moço. Estava, numa prefeita contemplação do horizonte e perdido no tempo, a mascar raízes.


- Então Sá Moço, estás a comer raízes?
 

- Sim! É, só, remédio, para dar força! As mulheres esperam-me!
 

- Todas?
 

- Sim, todas! As mulheres são ciumentas e não se podem alterar ou adiar as visitas conjugais. Todas pedem para ser contempladas, de igual modo, com força, com as regras acordadas e com uma duração de quatro dias.
 

- E… quando o homem não pode, por doença ou está velho?
 

- Quando o homem está doente, a mulher, pelo casamento, está obrigada de fidelidade ao marido.
 

- Mas… quando não pode, mesmo… por ser velho?
 

- Que há-de fazer uma mulher nova, a quem a família entregou a um marido idoso com mais mulheres, filhas da mesma idade e, muitas vezes, já incapacitado de cumprir os seus deveres de progenitor?
 

A seguir - Adultério

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 06.12.09 às 18:55link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Começando pelo fim do texto, um casamento era um acordo entre duas famílias.
 

Relativamente a este tema o Sá Moço era muito afirmativo, orgulhava-se da sua progenitura e contava-me com alegria: - Quando nasceu o meu primeiro filho mandei reservar uma filha, a nascer, de um casal amigo para que os nossos laços de amizade ficassem mais fortes com o casamento deles. No final da conversa, o Sá Moço ainda acrescentou: - Mulher que não se compra, é prostituta!
 

Entre os quiôcos, o casamento era polígamo e efectuado através da compra da mulher. Nunca era um acto comercial nem dava o direito ao marido a uma futura venda, era, apenas, o processo de transferência da tutela dos pais, a permissão de coabitação, de gerar descendência, tomar conta do lar e dos filhos, trabalhar nas lavras e ao longo do tempo ganharem consideração e respeito mútuo.
 

Tudo começava com uma espécie de noivado.
 

Quando a noiva vivia em casa dos pais o futuro marido fazia-lhe visitas assíduas para que a sua presença futura não fosse a de um estranho. Oferecia prendas à noiva e à família.
 

Quando, esta, coabitava com o homem prometido passava o tempo a ajudar as outras mulheres, em pequenos trabalhos, e a visitar com regularidade os familiares da sua aldeia, onde ficava algumas semanas. Nestas ocasiões, aconteciam, com naturalidade, algumas ligações amorosas com um qualquer rapaz do seu agrado, sem que isso tivesse alguma importância para o futuro marido.
 

As núpcias, que começavam a seguir à primeira menstruação da mulher e só depois de o homem ter feito a entrega do valor da compra aos pais, era a cerimónia decorrente da colocação da noiva em casa do marido (podem ler mais detalhes em: A iniciação das raparigas).
 

A comunidade organizava um cortejo nupcial, com a noiva, os seus familiares e convidados, os familiares do noivo e várias crianças, até à nova residência na aldeia do marido, onde era recebida em festa, pintada com caulino e sentada sobre uma esteira à porta da casa. De seguida, juntavam-se os dois, sobre a esteira, onde se marcavam mutuamente com uma massa branca na fronte e no peito.

 

A noiva depois declarar, para que todos a ouvissem, que tinha atingido a idade adulta, tocava na perna do marido e iniciava um bailado nupcial, marcando o ritmo com o ondular do corpo, dirigindo-se sempre para dentro de casa.
 

O toque na perna era interpretado por todos como o reconhecimento do marido, a união no lar e a entrega sexual.
 

Na primeira noite, em pleno batuque, os noivos ficavam na casa, onde já dormiam juntos.

 

Como não podiam ter relações sexuais nas duas primeiras noites, faziam-se acompanhar por uma criança para dormir no meio deles.
 

No dia seguinte comiam uma refeição de frango, sem nunca partirem ou trincarem os ossos, numa representação quase pública em que a devoção, à fecundidade da mulher e ao respeito mútuo do casal, era apoiada e confirmada por todos.
 

Como não acompanhei de perto estes momentos ou não lhes dei a devida atenção, Sá Moço teve o cuidado de me alertar para a importância deste facto e acrescentou: - Esta é a única vez que marido e mulher comem juntos, daí em diante comem separados. Primeiro o homem e depois a mulher e os filhos, quando os houver. Comer juntos representa ser de descendência comum e estarem em consanguinidade, o que os impede de terem relações sexuais por ser equivalente a uma relação incestuosa.
 

Na terceira noite, depois de o homem ter prestado culto aos antepassados comuns, colocava uma pena do frango entre os cabelos. Quando a mulher o imitava, estava a dizer-lhe que a partir daquele momento ficava pronta para uma intensa relação sexual, que, com toda a naturalidade, se prolongava por três a quatro dias, sem saírem da casa.
 

Este casamento, acordado inicialmente por duas famílias amigas, que passava pela fase de compra e pelo conhecimento e respeito mútuo da mulher e do homem, só seria confirmado após o nascimento do primeiro filho.
 

A seguir - O nascimento

Depois - A poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 30.11.09 às 00:02link do post | favorito

Angola / Alto Chicapa 1973


O chamado luto pesado durava quatro dias.


A viúva, rapava o cabelo, não se lavava e não mudava de roupa. A sua alimentação era feita à base de alimentos crus e água.
Durante um ano, isolava-se, vestia-se com alguns trapos enrolados ao corpo e não podia ter actividade sexual.
 

Decorrido este tempo, acontecia o chamado rito da purificação, que consistia em ter relações sexuais com um homem estranho à aldeia, para descarregar as suas impurezas. Quando não era possível encontrar um estranho usavam uma mulher mais velha que fazia o papel de macho. Utilizavam um tubérculo de mandioca, preparado para o efeito, numa cópula simulada e realizada junto às margens de um rio. Depois de tomar um banho purificador, a viúva ficava liberta, podendo casar-se novamente.
 

Depois dos actos purificadores, realizava a cerimónia do fim do luto, junto dos seus familiares e de toda a gente da aldeia. Era um dia cheio de cantares, danças, comidas e muitas bebidas alcoólicas.
 

Quando era o homem a ficar viúvo, tudo era mais complicado.

Tinha de indemnizar a família da morta e era, sempre, acusado de negligência, de maus tratos e de ser o responsável.
 

Durante o luto pesado o viúvo dormia fora de casa, não cortava a barba e o cabelo, e andava vestido com panos amarrados à cintura.
 

A purificação acontecia, de um modo igual ao da viúva. Depois de um ritual sexual com uma mulher estranha ou através da masturbação, banhava-se no rio e bebia uma infusão preparada pelo tahi (adivinho).
 

Naquela época, o mundo dos quiôcos, era uma sociedade cheia de valores, até na morte. Esta, significava o fim da força vital de um ser humano, e por este ser considerado como um elemento integrante da comunidade, a aldeia sentia-se atingida.
 

(A seguir - As núpcias)

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 10.09.09 às 22:04link do post | favorito

Uma das facetas mais curiosas é a que é dada, como no texto anterior, pela chamada literatura oral e o modo como a contam, aqueles que a sabem contar.


É geralmente ao cair da noite, junto a uma fogueira e num jango ou tchota (penso que é este o nome), que se contam as melhores histórias, muitas nunca ouvidas, sobre homens, aventuras, animais, seres… e muita, muita invenção.

 


Quando contam, acompanham toda a narração com mil gestos e trejeitos como se estivesse a acontecer algo. O contador levanta-se, deita-se, salta, grita, emita animais e muitos outros sons.


É uma autêntica representação viva que acaba por envolver todos.


Foi neste jango que ouvi, da boca dos mais idosos, mais uma lenda oral Tchokwe sobre a sua ascendência divina.

 

 

Nzambi ou Calunga (Deus), depois de ter criado o Mundo mandou Samuto (homem) e Namuto (mulher) povoar a terra com os seus descendentes.


Entregou a Samuto uma enorme cabaça e um pequeno embrulho, com a recomendação de só os abrirem quando encontrassem uma grande serra.


Desconhecendo os seus sexos, Samuto e Namuto caminharam na Terra até ao Congo, onde encontraram a tal montanha indicada por Nzambi.


Samuto, abriu a cabaça e dela saíram todos os animais que deveriam povoar a Terra. O embrulho como cheirava muito mal lançou-o fora.
 

Namuto, ao saber o que tinha acontecido ao embrulho, censurou-o e exigiu-lhe que o fosse buscar.
 

Samuto, depois de várias tentativas, sem sucesso, foi ter com Nzambi, contou-lhe o que tinha acontecido e que estava muito arrependido. Nzambi, disse-lhe que voltasse à Terra, onde tinha deixado Namuto e levasse o cão até ao local onde tinha abandonado o embrulho, e aí o soltasse.


Samuto, assim o fez. Passado pouco tempo o cão apareceu com o embrulho na boca.


Samuto, ao mostrar o embrulho a Namuto, esta manifestou-se muito contente batendo-lhe no baixo-ventre. Como este se queixou com muitas dores, Namuto examinou-o, chegando à conclusão que eram diferentes.


Acabaram por ter um filha de nome Naconde, a qual veio a unir-se com um homem chamado Cassai, vindo não sei de onde, e cujos cinco filhos e três filhas deram origem aos actuais povos da Lunda.
 

A seguir - Batuque em Samuge

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 05.09.09 às 23:35link do post | favorito

Nos anos 70 a história de muitos povos africanos, ou não era conhecida, ou então, não a divulgavam.


Durante a minha passagem pela região do Alto Chicapa, tive a sorte de ouvir um pouco dessa história. A ausência de documentos era evidente e inquestionável, no entanto era sempre possível chegar à transmissão oral, passada de geração em geração, onde a palavra, a honra e a figura dos chefes (muatas) faziam fé.


No final de uns rotineiros cinco dias nas matas da margem direita do rio Cuílo, a que uns chamavam de patrulha e outros de operação militar, convidei o Sá Moço para beber uma cerveja na “loja do Capela”.

 


É em tempo de guerra que se limpam as armas, era… o que eu costumava dizer, mas por outro lado adorava os momentos de paz e uma boa conversa.

 


Enquanto as garrafas de cerveja se amontoavam numa mesa improvisada, com alguns convidados de ocasião a aparecerem, uns pela bebida, e não só, e outros para mais tarde relatarem toda a conversa ao Sr. Chefe de Posto, um jovem de borbulhas na cara como eu, ouvia coisas interessantes e os muitos modos de vida, o primo que estava na Jamba e costumava visitar as duas mulheres no quimbo, o sexo que era praticado obrigatoriamente de lado, a quase aceitação do adultério…
 

Sabia que estava entre um povo tradicionalmente muito reservado, mas era nestes momentos, um bocadinho antes de os olhos ficarem vermelhos, que todos eles se soltavam, nas conversas e… no rancor, se conheciam as suas intenções, o que tinham de bom, as muitas tradições e a imensa história.
 

Sem estar premeditado, perguntei ao Sá Moço se sabia quem eram os seus antepassados, quiôcos.


- Quiôcos não! Tutchokwe!


Depois de um pequeno silêncio, lá começou por dizer:
- Noutros tempos, o rio Congo (o nosso conhecido rio Zaire) era atravessado por povos vindos das montanhas, umas montanhas geladas, lá para norte, onde há um grande mar (a região dos grandes lagos).
- Os mais velhos também contam que as primeiras tribos a chegarem à Lunda, foram os Bungos, um povo de agricultores, pescadores e caçadores, e os Balubas, um povo errante de caçadores.
 

- Sá Moço! E o povo que já vivia na Lunda?
 

- Esses, são os filhos de Nzambi (Deus)!
 

- Continua! É muito interessante o que estás a contar.
 

- Então, a tribo dos Bungos, organizada em aldeias de famílias, cada uma com o seu chefe, obedeciam ainda a um chefe superior, o conhecido Xacala.
- Xacala, era um grande chefe! Dizem, que foi espancado pelos filhos! Antes de morrer, pediu a todos os chefes das aldeias para se manterem unidos e formarem um estado, reconhecendo como sua única herdeira e senhora das terras a sua filha Luégi, a quem deixava o Lucano, uma bracelete de braço, símbolo dos grandes chefes de sangue real.


- Luégi, que tudo indicava viesse a casar-se com um dos chefes, encontrou-se um dia com o caçador Ilunga, filho do chefe dos Balubas, com quem veio a casar. Da união nasceu o filho Noeji a quem foi dado o título de chefe Muatchianvua (senhor de todas as terras).


- Após o casamento de Luégi com Ilunga, os Bungos desuniram-se. Criaram-se muitas desordens tribais e aconteceram muitas dissidências.


- Muambumba, primo de Luégi, um dos descontentes, partiu com a sua comitiva para a região do Alto Chicapa, onde, próximo da nascente do rio Cassai, formou e tornou-se chefe de um novo reino, Tchiboco ou Tchokwe (quiôco).

 


Tudo o que ouvi e aqui contei diz respeito à tradição oral transmitida de geração em geração, tal como as nossas lendas. Como é óbvio, tudo isto é falível e talvez de informações incorrectas, mas foi assim que as ouvi, portanto é assim que as conto.


Ainda me lembro, muito bem, daquele fim de tarde, daquela mesa e ainda, de alguém acrescentar que os antigos eram guerreiros cruéis, dominavam e atacavam as outras tribos, assaltavam e saqueavam os povoados de onde traziam, como espólio, os haveres, e as mulheres e as crianças que reduziam a escravos. Aos homens vencidos cortavam-lhe a cabeça.
 

A seguir - Um contador de histórias

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 26.08.09 às 23:59link do post | favorito

Foram coisas fantásticas e sensações inesquecíveis, embora algo estranhas!
 

No seu verdadeiro ambiente, sobre tudo, com muita curiosidade, me envolvi. Tive tempo, para compreender, interpretar, colaborar, e…receber.
 

Vivendo, quase três anos no Leste de Angola (1972/74), no isolamento e na solidão, longe, muito longe mesmo, da família, dos amigos e das ditas civilizações evoluídas, refugiei-me na observação de tudo e daquele mundo de homens, mulheres e crianças, que sofrem e riem como nós.
 

Andei pelo mato e por locais onde poucos seres humanos passaram, selva a cem por cento!

 

Parei em quimbos, atravessei pontes improvisadas, percorri rudimentares picadas e muitos quilómetros a pé por trilhos abertos na floresta.
 

 

Região do Alto Chicapa (2008/09) 

 

À luz misteriosa da noite, sob um enorme manto de estrelas, vi danças, homens e graciosas mulheres em batuques desconcertantes, sensuais e cheios de vida, entre costumes estranhos e impenetráveis.
 

Fui a cerimónias de nascimentos, da iniciação dos jovens, de feiticeiros, às mahambas (cerimónias de espíritos e feiticeiros), falei com os quimbandas (homens que curam doenças), os tai (adivinhadores)… e, guardei tudo o que senti, desde os cheiros às imagens.
 

Depois de tudo isto, fiquei com impressões inapagáveis, mais rico, mais forte e diferente, um novo homem.

 

Estávamos no Alto Chicapa, uma região isolada e longínqua com o seu quê de misteriosa, a 10º 56´02. 78” de Latitude Sul e a 19º 08´ 46. 36” de Longitude Este, a 1260 metros de altitude e a cerca de 350 quilómetros da Vila de Henrique de Carvalho, hoje cidade de Saurimo, capital da Lunda Sul, o mais próximo e acessível centro da vida civilizada.
 

 

Comuna do Alto Chicapa (2008/09) 

 

É a terra que me traz à memória momentos gratificantes e pessoas por quem tenho o mais profundo e agradecido respeito!
 

Carlos Alberto Santos

 

A seguir - A formação do povo quioco

 


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