A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 06.02.10 às 01:08link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


Jean de La Bruyére disse: “a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”.

 

Para mim, a vida deve estar entre o sentir e o pensar, entre a tragédia e a comédia, porque só sentindo uma tragédia, saberemos o que é uma comédia, só estando envolvido entre risos e gargalhadas, saberemos o que é o mais triste dos dramas, só sentir não basta, só pensar é insuficiente…
 

Foi sem grandes risos ou pensamentos, que vivi durante dois anos e meio, entre 1972 e 1974, num mundo diferente, cheio de mistérios, de valores, de usos e costumes muito primitivos, numa região isolada muito pobre onde se travava uma luta constante com a natureza para a sobrevivência, e onde a mulher, paciente e activa, tomava conta de tudo e tinha tempo para ser fêmea e mãe dedicada.


Num raio de 300 kms residiam apenas meia dúzia de europeus.


Durante aquele tempo, senti, que, em silêncio, o povo sofria… com os fantasmas dos feitiços, com a prepotência dos chicotes dos cipaios, com a ignorância do colonos a cilindrarem tradições, com os militares a destruírem resistências e com a administração colonial a deslocar estrategicamente as aldeias.
 

Em 1975, depois da chamada guerra colonial ter terminado, vivíamos uma época em que muitas pessoas se interrogavam sobre o que efectivamente tinham feito os portugueses em África, onde os heróis já tinham caído com o rolar das estátuas, o arrear apressado da nossa bandeira sem uma digna passagem de testemunho, o abandonar de um povo a uma guerra civil e a realidade, ignorada pela revolução dos cravos, Generais Spínola e Costa Gomes incluídos, da aliança secreta anteriormente estabelecida entre Portugal, África do Sul e Rodésia para o plano de defesa para a África Austral denominada Exercício Alcora ou PAPO (em inglês), Organização Permanente de Planeamento Álcora, onde Portugal transferia para a África do Sul a capacidade de dirigir as forças militares para terminar com o “terrorismo”.


Publicar estes textos e o documento Tchicapa, o final da viagem, numa época em que toda a actuação portuguesa era posta em causa, não era tarefa fácil. A corrida política e económica para África e o choque entre grandes potências transcende em muito os temas que escrevi, que são a outra face da realidade, a da verdadeira África, que eu, europeu, gosto.
 

 

Prestes a dar por concluída estas breves reflexões, resta-me dizer, que foi tudo projectado para não deixar morrer as nossas memórias, sempre assentes num conjunto de acções e de afectos e sustentadas num passado que naturalmente, importa considerar.


Ao Sá Moço, e a todos, que directa ou indirectamente leram e possibilitaram a apresentação destes textos, obrigado.
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 20.12.09 às 22:45link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Pelo seu trabalho em casa e nas lavras, e pela maternidade, a mulher assumia uma função económica e social abrangente. Cabiam-lhe as tarefas mais árduas e uma posição importante na comunidade, qualificada e não deprimente, e nunca inferior à do marido como se poderia pensar inicialmente.
 

 

Era desde tenra idade que o seu casamento era ajustado. Durante a fase da infância, a sua educação processava-se no convívio da família. Na adolescência, já muito independente, em tudo, gozava de uma ampla liberdade sexual, concedendo os seus favores a quem lhe agradava. Depois, durante o noivado, tornava-se exigente na forma e na frequência das visitas, e como desejava ser presenteada pelo homem que será o seu futuro marido, caso contrário era esquecido.
 

 

Quando chega a primeira menstruação, retira-se para a casa das raparigas menstruadas onde aprende tudo o que uma mulher deveria saber (ler mais aqui).
 

Depois de pago o dote de casamento aos pais é colocada em casa do marido, assumindo dai em diante uma posição social importante e legitimada para uma união sexual reprodutiva.
 

A nova fase da vida da mulher muda completamente, e é feita de inúmeras atribulações, onde até as relações sexuais e os contactos com o marido lhe serão dispensados à vez ou por turnos.

 


O casamento, que era indissolúvel, podia ser interrompido pela morte, pelos maus tratos ou pela esterilidade da mulher.


Perante a esterilidade feminina, Sá Moço dizia: - Mulher infecunda é mulher moribunda, mas… em muitos casos é o marido, o responsável, que, pelo excesso de mulheres, a idade avançada ou a incapacidade nas suas faculdades, fica inapto para a sua acção procriadora.

 

Por isso, é frequente, devido ao desejo de maternidade, que prevalece sobre qualquer outro sentimento, arranjar um homem, com ou sem o conhecimento do marido, para lhe dar os filhos desejados.
 

A mulher era sempre desejada, por dar a vida, e ser a obreira da família e do poder económico, mas também era temida, por na menopausa ter mau humor e a acharem com poderes maléficos, e daí a considerarem, algumas vezes, uma feiticeira.
 

A seguir - A alimentação

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 16.12.09 às 00:35link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Naquela época e na região da Lunda era normal a pluralidade de uniões, em família, de um homem com várias mulheres, onde os mais novos tinham três ou quatro, e os mais velhos, e alguns sobas, chegavam aos dezasseis casamentos.
 

Tive a sorte e o privilégio de conhecer um desses homens, “chefe” de uma grande família e de uma vasta prole, uma autêntica comunidade. Tinha uma idade avançada, era sábio e estava sempre sorridente. Vivia feliz, de uma forma imparável e jovial, parecia ser detentor de um segredo. Era apaparicado, pelas várias mulheres muito jovens, mesmo muito! Dizia sempre a sorrir: - Nenhuma tem razão de queixa!
 

Só por curiosidade, mas em sentido oposto, na região do Luatamba, Moxico, havia alguns casos de poliandria em que uma mulher vivia casada com dois ou três homens. Embora nunca tivesse contactado, de perto, com uma comunidade deste tipo, contavam que o primeiro marido era quem detinha todos os privilégios e direitos, e era, sempre, considerado o pai legal de todos os filhos.
 

Voltando à Lunda. A poligamia era o sistema familiar usual, onde, fosse qual fosse o número de mulheres do polígamo, havia, entre elas, uma, que era a preferida e mais confidente, a principal (muári), que usufruía um tratamento especial na gestão do lar, na vida do marido e no que vestia. As outras, as raparigas (tusula), eram tratadas em pé de igualdade nas relações sexuais, em parte do vestuário, nos trabalhos domésticos e nas lavras.

 


Dos, diversos, contactos, que tive ao longo de dois anos e meio de permanência, na região, percebi que a poligamia, não era só o sexo e os filhos, era o poder económico desenvolvido por cada uma das mulheres, era a aliança entre famílias e era a posição social do homem na comunidade.
 

Durante uma patrulha militar, no final de um dia, entrei em diálogo com o meu bom amigo e guia Sá Moço. Estava, numa prefeita contemplação do horizonte e perdido no tempo, a mascar raízes.


- Então Sá Moço, estás a comer raízes?
 

- Sim! É, só, remédio, para dar força! As mulheres esperam-me!
 

- Todas?
 

- Sim, todas! As mulheres são ciumentas e não se podem alterar ou adiar as visitas conjugais. Todas pedem para ser contempladas, de igual modo, com força, com as regras acordadas e com uma duração de quatro dias.
 

- E… quando o homem não pode, por doença ou está velho?
 

- Quando o homem está doente, a mulher, pelo casamento, está obrigada de fidelidade ao marido.
 

- Mas… quando não pode, mesmo… por ser velho?
 

- Que há-de fazer uma mulher nova, a quem a família entregou a um marido idoso com mais mulheres, filhas da mesma idade e, muitas vezes, já incapacitado de cumprir os seus deveres de progenitor?
 

A seguir - Adultério

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 13.12.09 às 23:22link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

O homem e a mulher só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade, os filhos eram o principal alvo.


Quando a mulher engravidava, toda a sua vida se alterava. Era envolvida por muitos cuidados, como o repouso e o fim do trabalho nas lavras. Às refeições, passava a ingerir seivas fortificantes e mastigava raízes anti-vermes.


No início da gravidez, consultava o adivinho (taí) para saber quais as cerimónias e os amuletos protectores que eram necessários para o bom desenvolvimento e saúde do feto e… ficar longe de feitiços e maus-olhados.
 

As relações sexuais e os contactos com os homens também eram suspensos.
 

Afirmavam, que, durante a gravidez, a mãe não podia comer certos alimentos, como, entre outros, a carne de porco, senão o filho nasceria com a cara em formato de porco.
 

No último mês da gestação a mulher mudava-se para uma casa mais pequena, mais rudimentar, ou para a cozinha onde ia ter a criança.
 

Devido a medos, a uma deficiente gestação ou outros motivos que nunca cheguei a perceber, havia casos, em que as mulheres iam ter o filho, completamente sozinhas, fora da aldeia, em plena mata, e apenas encostadas ou agarradas a uma árvore. Lidei, acidentalmente, com uma situação destas, na orla da pista de aviação do Alto Chicapa, onde o gemido de uma mulher e o choro de uma criança me atraíram.

 

 

Não sabia o que estava a acontecer, mas era algo diferente.

Com alguma irresponsabilidade, e totalmente desprotegido, aproximei-me.

Felizmente, era uma criança a acabar de nascer bem e uma super mãe a fazer todo o trabalho, parto e pós parto.

 

A minha acção foi paupérrima e, acima de tudo, envergonhada, mas aquela mãe só me deu liberdade para chamar a primeira mulher, que visse na aldeia dos GEs.

 


Quando os partos ficavam muito difíceis e eram assistidos por uma mulher mais velha (uma espécie de parteira), esta introduzia na vagina da parturiente folhas de uma árvore, para ajudar à dilatação, e ao mesmo tempo ia-lhe perguntando os nomes dos homens com quem tinha tido relações sexuais, além do marido, e insistia sempre para que não ficasse nenhum esquecido (ler mais em Missão Humanitária).


Acreditavam que as dificuldades do parto eram devidas às muitas relações extra conjugais e que a expulsão do feto não seria possível sem a indicação de todos os homens com quem tinham mantido relações.
 

A seguir ao parto, a mulher bebia uma infusão de folhas com propriedades cicatrizantes, fazia lavagens vaginais com a água de folhas de mandioca e tomava vários banhos frios no rio.

 


Sobre o leite materno, foi-me contado: Quando uma mãe não tinha ou lhe faltava o leite, a criança era alimentada por uma outra mulher da família ou da aldeia com filhos latentes e se isto não fosse possível, uma das outras mulheres do marido ingeria umas raízes, que em dois dias lhe provocava o aparecimento de leite.
 

 

Era engraçado ver estas crianças a acompanharem a mãe para todo o lado e em todos os trabalhos, repousando sobre as suas costas com os seios sempre à sua disposição, logo que o desejavam.
 

 

A mulher revia-se nos filhos, sempre com um acompanhamento e carinho inigualável desde o berço até à sua vida de adulto, num círculo inquestionável, que nenhuma vicissitude podia romper.

 

Os valores familiares deste mundo quioco eram muito fortes, só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade!
 

A seguir - Poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 24.09.09 às 00:05link do post | favorito

Em Maio de 1973, depois de um mês de férias no “Putu” (Portugal), o pequeno avião que me transportava da cidade de Luanda para a cidade de Henrique de Carvalho (Saurimo), devido a um valente temporal, foi desviado para a cidade de Silva Porto (Kuito).
 

Não me lembro muito da cidade.

 

 

Sei que pernoitei, sem luxos, no pequeno Hotel Girão, perto da casa de uma família a que chamavam de “Meiaonça”.


Ao jantar, o empregado, que dava apoio ao serviço das mesas, acercou-se de mim e muito baixinho, disse:
- Hoje, é a noite da mulher nua! São 50 angolares, ida e volta!
- Obrigado, mas já vi disso nos bares de Luanda.
- “Cá”! Não é isso, não! Esta é festa na sanzala, da boa, é dança de preto, mesmo!


Efectivamente, numa noite muito escura e carregada de nuvens, fui encontrar um espectáculo raro, curioso e sério.

 

Chamavam-lhe a dança das mulheres de fogo.


Na sanzala reinava um intrigante silêncio, entrecortado a espaços por vários e misteriosos ruídos, sem origem definida, parecendo os fantasmas errantes do imaginário das mentes de um povo residente na selva.


De um lado, havia tocadores de gomas e tchinguvos (tambores), ágeis e fortes nas suas pancadas, e do outro lado, vários tocadores de quissange (instrumento de palhetas) com sons e melodias muito doces, dim-dom-dim. Ao centro, alguns homens com vozes roucas, em coro forte e ritmado são acompanhados por um coro de vozes femininas.
 

 

 

Mais longe, na selva, num lugar indeterminado, um outro grupo de mulheres, responde entoando sons e cantares parecidos.


Momentaneamente, os tambores começam a tocar muito fortes e apressados… puum, puum… puum, puum, as vozes dos homens tornam-se mais claras e precisas e lá ao fundo na selva no negrume da noite dispara um outro coro de vozes femininas… é tudo empolgante, e, ao mesmo tempo, arrepiante.
 

Acreditem! Aqui, começa o deslumbramento total.
 

Surgem chamas e faúlhas de todos os lados, iluminando a noite, e as mulheres até aqui escondidas, aparecem nuas, completamente nuas, envoltas, nos pulsos, nos tornozelos e na cintura, com um material herbáceo a arder e a produzir uma chama azulada.
 

As atitudes, o fogo, os bailados, os cantares e os sons, dos chocalhos, das argolas, dos gomas, dos tchinguvos e dos quissange, formavam uma beleza rítmica impressionante, ao ponto de até o ar parecer fosforescente e fantasmagórico.


Estávamos ao ar livre a presenciar um cenário natural… e a viver momentos de uma arte maravilhosa com origens muito primitivas.


Porque era tabu, as mulheres de fogo, sempre visíveis, e também ao nosso alcance, não se aproximavam dos homens mas insistiam nos movimentos sensuais e num bailado de um profundo orgasmo, como estivessem a ser possuídas por uma divindade da dança.
 

Esta dança, admirável, envolvente e tão estranha, em conjunto com o fogo e os sons, glorificava a nudez sem complexos e a criação da vida.

 

A seguir - Batuque dos Muquixes
 

Carlos Alberto Santos

 


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