Nos anos 70 a história de muitos povos africanos, ou não era conhecida, ou então, não a divulgavam.
Durante a minha passagem pela região do Alto Chicapa, tive a sorte de ouvir um pouco dessa história. A ausência de documentos era evidente e inquestionável, no entanto era sempre possível chegar à transmissão oral, passada de geração em geração, onde a palavra, a honra e a figura dos chefes (muatas) faziam fé.
No final de uns rotineiros cinco dias nas matas da margem direita do rio Cuílo, a que uns chamavam de patrulha e outros de operação militar, convidei o Sá Moço para beber uma cerveja na “loja do Capela”.
É em tempo de guerra que se limpam as armas, era… o que eu costumava dizer, mas por outro lado adorava os momentos de paz e uma boa conversa.
Enquanto as garrafas de cerveja se amontoavam numa mesa improvisada, com alguns convidados de ocasião a aparecerem, uns pela bebida, e não só, e outros para mais tarde relatarem toda a conversa ao Sr. Chefe de Posto, um jovem de borbulhas na cara como eu, ouvia coisas interessantes e os muitos modos de vida, o primo que estava na Jamba e costumava visitar as duas mulheres no quimbo, o sexo que era praticado obrigatoriamente de lado, a quase aceitação do adultério…
Sabia que estava entre um povo tradicionalmente muito reservado, mas era nestes momentos, um bocadinho antes de os olhos ficarem vermelhos, que todos eles se soltavam, nas conversas e… no rancor, se conheciam as suas intenções, o que tinham de bom, as muitas tradições e a imensa história.
Sem estar premeditado, perguntei ao Sá Moço se sabia quem eram os seus antepassados, quiôcos.
- Quiôcos não! Tutchokwe!
Depois de um pequeno silêncio, lá começou por dizer:
- Noutros tempos, o rio Congo (o nosso conhecido rio Zaire) era atravessado por povos vindos das montanhas, umas montanhas geladas, lá para norte, onde há um grande mar (a região dos grandes lagos).
- Os mais velhos também contam que as primeiras tribos a chegarem à Lunda, foram os Bungos, um povo de agricultores, pescadores e caçadores, e os Balubas, um povo errante de caçadores.
- Sá Moço! E o povo que já vivia na Lunda?
- Esses, são os filhos de Nzambi (Deus)!
- Continua! É muito interessante o que estás a contar.
- Então, a tribo dos Bungos, organizada em aldeias de famílias, cada uma com o seu chefe, obedeciam ainda a um chefe superior, o conhecido Xacala.
- Xacala, era um grande chefe! Dizem, que foi espancado pelos filhos! Antes de morrer, pediu a todos os chefes das aldeias para se manterem unidos e formarem um estado, reconhecendo como sua única herdeira e senhora das terras a sua filha Luégi, a quem deixava o Lucano, uma bracelete de braço, símbolo dos grandes chefes de sangue real.
- Luégi, que tudo indicava viesse a casar-se com um dos chefes, encontrou-se um dia com o caçador Ilunga, filho do chefe dos Balubas, com quem veio a casar. Da união nasceu o filho Noeji a quem foi dado o título de chefe Muatchianvua (senhor de todas as terras).
- Após o casamento de Luégi com Ilunga, os Bungos desuniram-se. Criaram-se muitas desordens tribais e aconteceram muitas dissidências.
- Muambumba, primo de Luégi, um dos descontentes, partiu com a sua comitiva para a região do Alto Chicapa, onde, próximo da nascente do rio Cassai, formou e tornou-se chefe de um novo reino, Tchiboco ou Tchokwe (quiôco).
Tudo o que ouvi e aqui contei diz respeito à tradição oral transmitida de geração em geração, tal como as nossas lendas. Como é óbvio, tudo isto é falível e talvez de informações incorrectas, mas foi assim que as ouvi, portanto é assim que as conto.
Ainda me lembro, muito bem, daquele fim de tarde, daquela mesa e ainda, de alguém acrescentar que os antigos eram guerreiros cruéis, dominavam e atacavam as outras tribos, assaltavam e saqueavam os povoados de onde traziam, como espólio, os haveres, e as mulheres e as crianças que reduziam a escravos. Aos homens vencidos cortavam-lhe a cabeça.
A seguir - Um contador de histórias
Carlos Alberto Santos