A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 09.10.09 às 23:33link do post | favorito

O batuque dos Muquixes era a dança mais exótica do folclore na região do Alto Chicapa (Lunda Sul).
 

 

O Muquixe, era um mascarado. Vestia-se, cobrindo todo o corpo, com “fatos” feitos de vegetais, de cascas de árvore, tecidos velhos e de cordas. A cabeça e a cara eram tapadas por uma máscara, geralmente muito pouco simpática. Nas mãos agitavam pequenos chicotes, tendo na extremidade pequenas bolas que emitiam sons intimidatórios, como se fossem matracas.
 

 

Apareciam no batuque, de uma forma quase sempre inesperada, pulando, agilmente, em deslocações rápidas e de uma forma desengonçada. Os seus bailados, acompanhados de uivos, eram geralmente muito acrobáticos.
 

 

Estes batuques, como são feitos de dia, em tardes cheias de sol, são os mais frequentados, pelo muito povo, vindo de todos os lados, de muitos e muitos quilómetros de distância.

 

As jovens, em maior número, aproveitam o dia para ostentar os seus panos garridos, alguns penteados, os enfeites naturais e dentes imaculadamente brancos. Os panos e algumas missangas, estrategicamente presos à cintura, mostravam um tronco semi-nu, bem torneado, de onde emergiam tensos seios.
 

Era um dia de festa, ardente e tumultuosa, com cânticos ritmados, batimentos de palmas e danças em grandes rodas.
 

Os meus apontamentos, da época, ainda me recordam, mais ou menos, isto:
- Tchikai mbongo menda (a mulher e o homem andam).
- Coro – Wóhó! Yaya! Ahééé!
- Xouyée, makutu (agita o pénis).
- Coro – Yóó hóó yóó hóó
- Mu Tchenge… (A mulher bonita…)
- Coro – Heya heya yelé hehe
- Coro – Yéóléé… Há! Hó! Hou! Hewa!
 

Repentinamente, ouvem-se vozes agitadas e gritos estridentes. Num abrir e fechar de olhos todas as mulheres fogem às gargalhadas, gritando Muquixe!... Muquixe!...
Sempre que um dos bailarinos corre em direcção ao local das jovens, a mesma cena vai-se repetindo várias vezes, Muquixe!... Muquixe!...
 

 

Em complemento, Sá Moço dizia-me:
- Em tempos, alguns feiticeiros, aproveitavam-se do traje para espalharem o medo nas pessoas, praticarem violações em caminhos isolados e malefícios no quimbo, durante a noite.
 

Naqueles anos setenta, pude sentir, que o povo quioco, mesmo continuando a temer, profundamente, os feiticeiros, materializou estas lendas com a figura do Muquixe, que cobria o rosto para que não fosse reconhecido, modificava a voz, com o intuito de não denunciar a sua condição de mascarado, assegurando-lhe uma origem sobrenatural e mágica. Mesmo assim, nutria um grande respeito divertindo-se com eles nas festas, mas não restavam dúvidas que o traje e a própria máscara eram uma fonte inesgotável de emoções e de mistério num evento poderoso na sua vida social e psíquica.
 

A seguir - Duas palavras sobre medos e feitiços

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 24.09.09 às 00:05link do post | favorito

Em Maio de 1973, depois de um mês de férias no “Putu” (Portugal), o pequeno avião que me transportava da cidade de Luanda para a cidade de Henrique de Carvalho (Saurimo), devido a um valente temporal, foi desviado para a cidade de Silva Porto (Kuito).
 

Não me lembro muito da cidade.

 

 

Sei que pernoitei, sem luxos, no pequeno Hotel Girão, perto da casa de uma família a que chamavam de “Meiaonça”.


Ao jantar, o empregado, que dava apoio ao serviço das mesas, acercou-se de mim e muito baixinho, disse:
- Hoje, é a noite da mulher nua! São 50 angolares, ida e volta!
- Obrigado, mas já vi disso nos bares de Luanda.
- “Cá”! Não é isso, não! Esta é festa na sanzala, da boa, é dança de preto, mesmo!


Efectivamente, numa noite muito escura e carregada de nuvens, fui encontrar um espectáculo raro, curioso e sério.

 

Chamavam-lhe a dança das mulheres de fogo.


Na sanzala reinava um intrigante silêncio, entrecortado a espaços por vários e misteriosos ruídos, sem origem definida, parecendo os fantasmas errantes do imaginário das mentes de um povo residente na selva.


De um lado, havia tocadores de gomas e tchinguvos (tambores), ágeis e fortes nas suas pancadas, e do outro lado, vários tocadores de quissange (instrumento de palhetas) com sons e melodias muito doces, dim-dom-dim. Ao centro, alguns homens com vozes roucas, em coro forte e ritmado são acompanhados por um coro de vozes femininas.
 

 

 

Mais longe, na selva, num lugar indeterminado, um outro grupo de mulheres, responde entoando sons e cantares parecidos.


Momentaneamente, os tambores começam a tocar muito fortes e apressados… puum, puum… puum, puum, as vozes dos homens tornam-se mais claras e precisas e lá ao fundo na selva no negrume da noite dispara um outro coro de vozes femininas… é tudo empolgante, e, ao mesmo tempo, arrepiante.
 

Acreditem! Aqui, começa o deslumbramento total.
 

Surgem chamas e faúlhas de todos os lados, iluminando a noite, e as mulheres até aqui escondidas, aparecem nuas, completamente nuas, envoltas, nos pulsos, nos tornozelos e na cintura, com um material herbáceo a arder e a produzir uma chama azulada.
 

As atitudes, o fogo, os bailados, os cantares e os sons, dos chocalhos, das argolas, dos gomas, dos tchinguvos e dos quissange, formavam uma beleza rítmica impressionante, ao ponto de até o ar parecer fosforescente e fantasmagórico.


Estávamos ao ar livre a presenciar um cenário natural… e a viver momentos de uma arte maravilhosa com origens muito primitivas.


Porque era tabu, as mulheres de fogo, sempre visíveis, e também ao nosso alcance, não se aproximavam dos homens mas insistiam nos movimentos sensuais e num bailado de um profundo orgasmo, como estivessem a ser possuídas por uma divindade da dança.
 

Esta dança, admirável, envolvente e tão estranha, em conjunto com o fogo e os sons, glorificava a nudez sem complexos e a criação da vida.

 

A seguir - Batuque dos Muquixes
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 17.09.09 às 00:18link do post | favorito

Adormeci muitas vezes na região Luatamba / Canage, em Angola, ao som dos “tambores” tocados num batuque lá longe, a realizar-se algures. É claro que um batuque é o oposto de uma canção, os seus ritmos são nervosos, um pouco bárbaros e não nos deixam dormir. Ficava a ouvi-los pela noite fora, trazidos pelo vento à mistura com os sons da selva, até que o sono me vencia.
 

Assisti a alguns, e não é sem uma ponta de saudade que os recordo a todos.
 

Era uma vez um batuque que se realizava na sanzala de Samunge, perto do Alto Chicapa, e cujo rufar dos tambores me impeliam a ir até lá. Já na tarde anterior eu tinha lá estado, a assistir ao batuque dos mais novos.
 

 

Desta vez, era o batuque dos adultos, a noite da Tchisela, um batuque "a sério".
 

Um batuque, é mais do que uma dança, são cânticos, movimentos e atitudes, que se projectam intensamente em todos os momentos da vida deste povo. Está presente em cerimónias de simples diversão, de magia e em diversos rituais, como a iniciação dos jovens ou o casamento. É pobre, na coreografia das danças e na letra das músicas, mas em contrapartida, há muita vida, um ambiente misterioso, muita sensualidade e intensos momentos de emoção, beleza e alegria.

 

Sá Moço, com ar de quem sabe, dizia-me para ir até lá, que há muitos mistérios escondidos na noite do batuque, nas fogueiras e na projecção das enormes sombras dos corpos dos dançarinos.
 

Muito antes de chegar, lá ao longe… Puum, Puum, Puum… no silêncio de uma noite envolta num maravilhoso manto de estrelas, ouviam-se os sons e o eco dos gomas e dos tchinguvos (tambores) a chamarem os convidados.
 

A chegada foi edílica, e… talvez… assustadora.
 

Próximo das cubatas, no cercado da festa, ardiam as fogueiras, com fortes labaredas em espadas de fogo, onde se projectavam sombras fantásticas e gigantes agitados. Eram às centenas os vultos esbatidos a dançarem e a tocarem, ou a fumarem em silêncio a sua mutopa (cachimbo).
 

 

Os tocadores imprimiam um ritmo frenético aos seus tambores, que aqueciam periodicamente ao fogo, para retesarem ainda mais as peles que vibravam retumbantemente acelerando ainda mais o rodar dos dançarinos no louco rodopio do batuque.
 

Nada era feito ao acaso.
 

Ainda recordo as palavras do chefe da aldeia na sua voz forte, a dizer: Esta dança não pode acontecer sem as mulheres. Tudo é permitido, não há maridos nem esposas, unicamente homens e mulheres. Por conseguinte, quem tiver ciúmes que vá para casa ou se deixe ficar com as mulheres junto da fogueira. Deixem as rixas, as inimizades e os maus instintos lá fora, aqui, é só para comer, beber, fumar, dançar e gozar a vida com alegria e bom humor.
 

Hangane-nu cafema (dançai bem).
 

Numa grande roda, com homens de um lado e mulheres do outro, dançando e entoando uma monótona canção com um motivo musical que se repete indefinidamente, alternam no centro da roda, alguns homens, que se agitam de uma forma espantosa, e as mulheres, que se desdobram em formas corporais provocantes de movimentos circulares com o desejo a subir, e a crescer sempre.


Noite dentro, apareceram outras dançarinas, muito jovens, esbeltas, de seios firmes, parcialmente cobertas com um pano colorido (quitengue), solto ou preso à cintura, e ornamentadas nos braços e nas pernas com argolas e pulseiras feitas de minúsculas cabaças, produzindo um novo som, numa noite arrepiante, excitante e sensual.
 

É esse louco rodopiar do batuque que arrasta, uns para os maiores excessos de sensualidade e convida outros a ficarem acocorados junto à fogueira fumando silenciosamente a sua mutopa, sem pensarem no batuque ou até, a ficarem longe do mundo.


Foi, sem dúvida, uma noite vivida, uma daquelas inesquecíveis noites africanas, quentes e banhadas por estrelas como não há igual, de festa rija, misteriosa, ardente e agitada, onde todos, de uma maneira ou de outra, se divertiam.
 

Apesar de ser um militar conhecido, embora estivesse à civil, ninguém, em momento algum, me hostilizou. Fizeram jus à proverbial hospitalidade africana. Mesmo em tempo de guerra, aquele povo acolheu-me no seu seio de braços abertos e tratou-me exactamente como se fosse um seu membro. Enquanto lá estive, senti-me bem, participante e parte integrante daquela terra, como se tivesse ali nascido ou sempre vivido. Como em muitos outros dias, também nesta noite, senti África, vivi África e fui África.
 

 

A seguir - Mulheres de fogo

 

Carlos Alberto Santos

 


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