A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 17.09.09 às 00:18link do post | favorito

Adormeci muitas vezes na região Luatamba / Canage, em Angola, ao som dos “tambores” tocados num batuque lá longe, a realizar-se algures. É claro que um batuque é o oposto de uma canção, os seus ritmos são nervosos, um pouco bárbaros e não nos deixam dormir. Ficava a ouvi-los pela noite fora, trazidos pelo vento à mistura com os sons da selva, até que o sono me vencia.
 

Assisti a alguns, e não é sem uma ponta de saudade que os recordo a todos.
 

Era uma vez um batuque que se realizava na sanzala de Samunge, perto do Alto Chicapa, e cujo rufar dos tambores me impeliam a ir até lá. Já na tarde anterior eu tinha lá estado, a assistir ao batuque dos mais novos.
 

 

Desta vez, era o batuque dos adultos, a noite da Tchisela, um batuque "a sério".
 

Um batuque, é mais do que uma dança, são cânticos, movimentos e atitudes, que se projectam intensamente em todos os momentos da vida deste povo. Está presente em cerimónias de simples diversão, de magia e em diversos rituais, como a iniciação dos jovens ou o casamento. É pobre, na coreografia das danças e na letra das músicas, mas em contrapartida, há muita vida, um ambiente misterioso, muita sensualidade e intensos momentos de emoção, beleza e alegria.

 

Sá Moço, com ar de quem sabe, dizia-me para ir até lá, que há muitos mistérios escondidos na noite do batuque, nas fogueiras e na projecção das enormes sombras dos corpos dos dançarinos.
 

Muito antes de chegar, lá ao longe… Puum, Puum, Puum… no silêncio de uma noite envolta num maravilhoso manto de estrelas, ouviam-se os sons e o eco dos gomas e dos tchinguvos (tambores) a chamarem os convidados.
 

A chegada foi edílica, e… talvez… assustadora.
 

Próximo das cubatas, no cercado da festa, ardiam as fogueiras, com fortes labaredas em espadas de fogo, onde se projectavam sombras fantásticas e gigantes agitados. Eram às centenas os vultos esbatidos a dançarem e a tocarem, ou a fumarem em silêncio a sua mutopa (cachimbo).
 

 

Os tocadores imprimiam um ritmo frenético aos seus tambores, que aqueciam periodicamente ao fogo, para retesarem ainda mais as peles que vibravam retumbantemente acelerando ainda mais o rodar dos dançarinos no louco rodopio do batuque.
 

Nada era feito ao acaso.
 

Ainda recordo as palavras do chefe da aldeia na sua voz forte, a dizer: Esta dança não pode acontecer sem as mulheres. Tudo é permitido, não há maridos nem esposas, unicamente homens e mulheres. Por conseguinte, quem tiver ciúmes que vá para casa ou se deixe ficar com as mulheres junto da fogueira. Deixem as rixas, as inimizades e os maus instintos lá fora, aqui, é só para comer, beber, fumar, dançar e gozar a vida com alegria e bom humor.
 

Hangane-nu cafema (dançai bem).
 

Numa grande roda, com homens de um lado e mulheres do outro, dançando e entoando uma monótona canção com um motivo musical que se repete indefinidamente, alternam no centro da roda, alguns homens, que se agitam de uma forma espantosa, e as mulheres, que se desdobram em formas corporais provocantes de movimentos circulares com o desejo a subir, e a crescer sempre.


Noite dentro, apareceram outras dançarinas, muito jovens, esbeltas, de seios firmes, parcialmente cobertas com um pano colorido (quitengue), solto ou preso à cintura, e ornamentadas nos braços e nas pernas com argolas e pulseiras feitas de minúsculas cabaças, produzindo um novo som, numa noite arrepiante, excitante e sensual.
 

É esse louco rodopiar do batuque que arrasta, uns para os maiores excessos de sensualidade e convida outros a ficarem acocorados junto à fogueira fumando silenciosamente a sua mutopa, sem pensarem no batuque ou até, a ficarem longe do mundo.


Foi, sem dúvida, uma noite vivida, uma daquelas inesquecíveis noites africanas, quentes e banhadas por estrelas como não há igual, de festa rija, misteriosa, ardente e agitada, onde todos, de uma maneira ou de outra, se divertiam.
 

Apesar de ser um militar conhecido, embora estivesse à civil, ninguém, em momento algum, me hostilizou. Fizeram jus à proverbial hospitalidade africana. Mesmo em tempo de guerra, aquele povo acolheu-me no seu seio de braços abertos e tratou-me exactamente como se fosse um seu membro. Enquanto lá estive, senti-me bem, participante e parte integrante daquela terra, como se tivesse ali nascido ou sempre vivido. Como em muitos outros dias, também nesta noite, senti África, vivi África e fui África.
 

 

A seguir - Mulheres de fogo

 

Carlos Alberto Santos

 


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