A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 30.10.09 às 21:07link do post | favorito

Nenhuma observação simples, como as que fazia nas cerimónias e na manifestação dos costumes do povo quioco, me podia levar ao conhecimento do que têm de mais íntimo e quase impenetrável, o psíquico.


Era fácil observar toda a sua vida material, que até confiantemente punham a descoberto, mas quando se queria perceber a vida psíquica, as dificuldades eram enormes, encobriam os segredos e os mistérios.


Mesmo assim, ainda consegui lidar com uma grande diversidade de elementos ligados aos rituais da medicina.

 

Aqui, dominavam duas figuras, o Tchimbanda – o homem que cura as doenças do corpo, um curandeiro, uma espécie de fisioterapeuta e o único que conhecia os minerais e as espécies botânicas – e o Taí – o adivinhador -, um homem com muito prestígio entre os do seu quimbo e dos que ficavam próximos.
 

Quando alguém estava ou se sentia doente, o adivinhador era sempre consultado em primeiro lugar. A consulta começava, quase sempre, num ambiente de segredos e sinais.

 

 

 

De um cesto, chamado de adivinhação, colocado estrategicamente junto do doente, começava por retirar e colocar no chão, com gestos ritmados e misteriosos, um arco de metal a representar a aldeia. Depois, sucessivamente, ia colocando figuras de madeira, que eram o doente e alguma da sua família, patas de galinha, ossos, pedras, moedas… tudo envolto num líquido oleoso e avermelhado.
 

A verdadeira cerimónia de adivinhação começava com o Taí a invocar os espíritos ancestrais, a soprar num pequeno chifre de cabra, a comer, o que parecia ser comida, e a recitar palavras rituais sobre o que via.


Finalmente, sentenciava o mal.


Se o indivíduo estava com problemas psíquicos, informava a família que era um feitiço, qual o espírito irado, as rezas e os pagamentos a fazer e o que era necessário para a realização da mahamba, uma cerimónia de exorcismo para afastar o mal.
 

Se a doença era do corpo, então tinha de consultar o Tchimbanda, porque só ele, conhecedor das espécies botânicas, infusões, seivas, raízes, minerais e venenos, o poderia curar.


Em 1972, na região do Luatamba / Canage, vivi, como se costuma dizer, portas meias com um curandeiro, que tinha as duas valências, Taí e Tchimbanda. Embora fosse a pessoa mais importante da comunidade, eu nunca tive uma boa impressão sobre os seus modos de vida, achava-o um parasita, subornável.

 

Vivia comodamente à custa das crenças, explorava quem lhe caísse nas mãos e em caso de julgados, recebia de ambas as partes. Perante um doente em estado terminal, apresentava-se à família como um salvador. Dizia: - Será tratado, mas todos sabem que já está morto, embora respire.


Em 1974, no Alto Chicapa e nas aldeias próximas, devido ao trabalho desenvolvido pelo grupo de enfermagem da nossa Companhia, a 3485, os adivinhadores já tinham perdido quase toda a sua influência.

 


Sá Moço, sempre muito atento e temerário, nestas coisas, embora conhecendo melhor do que ninguém a actuação dos nossos enfermeiros e a mais-valia do médico, a nossa presença constante nas aldeias, o uso de um helicóptero para evacuação de doentes graves e os muitos pacientes que se deslocavam diariamente para tratamentos, ao posto de enfermagem do quartel, afirmava: - As doenças são provocadas por feitiços ou por espíritos, nunca são naturais.

 


Os mais novos, com o êxodo de algumas comunidades rurais para os centros urbanos, questionavam as crendices dos mais velhos e a utilidade de certas manifestações, apresentavam-se como pessoas importantes e copiavam a nossa cultura, embora, muitas vezes, segundo os piores métodos europeus, vadiavam, bebiam muito e viviam na chamada vida fácil.


(Dedico este texto ao Dinis Reis, ao José Vinhas, ao Manuel Carvalho e ao Luís Carvalho)
 

A seguir - A mahamba

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 20.10.09 às 14:04link do post | favorito

Naquela época (1972/74), os medos e os feitiços ocupavam um lugar de muito destaque na vida do povo e das aldeias (quimbos) ao redor do posto administrativo do Alto Chicapa, no município do Cacolo.

 


Confesso! Quando hoje penso, naquela carga psíquica, acho, que só serei capaz de escrever simples e despretensiosos apontamentos para temas tão complexos, onde, tantas vezes, me senti incapaz de fazer juízos e compreender muitas das representações e manifestações colectivas.


Era um mundo sobrenatural, cheio de contrastes.


Acreditavam e temiam a um Deus supremo, Nzambi, que rege o mundo e os homens, e, simultaneamente, também aceitavam a existência dos espíritos, quase sempre maus, que andavam perdidos na noite em lugares solitários. Parecia-me tudo tão estranho e de difícil entendimento, mas, sinceramente, era uma fonte inesgotável de emoções e de mistério. Tantas vezes, comparei tudo isto com a crendice do povo das nossas aldeias, nas almas penadas e nas do outro mundo.
 

Na doença, quando achavam que os espíritos se tinham apoderado do corpo realizavam uma mahamba, uma cerimónia onde parecia estar-se num mundo de magia, cheia de elementos adjuvantes, amuletos, muitas pessoas a assistirem ou a dançarem com a música dos thinguvos e dos gomas e um final… cheio de mistérios, numa possessão assustadora.


Na morte, diziam que o espírito do falecido não ia ficar tranquilo e sossegado além-túmulo, se não lhe fossem feitas as devidas cerimónias festivas, durante uma ou em várias noites, com muita comida e bebida, num longo batuque. Tudo feito, como sendo a condição indispensável à sua dignidade e ao seu sossego. Todos, mesmo todos, acreditavam, que se tal cerimónia não existisse ou não fosse digna, o falecido transformava-se num espírito mau, atormentando a aldeia.
 

O feiticeiro (tchinganga), manobrando na sombra, sem ninguém o ver ou o conhecer, era muito temido. Achavam-no poderoso, e com capacidades para causar, mesmo à distância, terríveis malefícios aos corpos e aos espíritos. Todos conheciam, muito bem, as formas de actuação, os venenos colocados na água ou na comida e os castigos emanados, à distância, por estatuetas ou forças espirituais. O medo do feitiço determinava a qualidade da vida do povo e levava-os a optarem por um dia-a-dia sem grandes haveres ou desejos e a pensarem, que amanhã podem estar mortos.

 


Sá Moço, dizia, tantas vezes, o futuro pertence a Nzambi (Deus), aos espíritos e aos feiticeiros.


Quando o questionei sobre estes assuntos, ficou… “cá, cá…” assustado e sem fala.


Mesmo assim, algumas semanas depois, lá consegui ouvi-lo dizer:


- O tchinganga é poderoso! Não se pode andar por aí a falar dele! Se suspeitar que alguém o descobriu troca-lhe o espírito e a personalidade, para nunca mais se lembrar do passado.


- Na aldeia… só mata ou faz adoecer as pessoas más e os assassinos, e… quando a justiça do chefe de posto poupa os malfeitores.


- Eu não sei nada! Os mais velhos é que contam! Durante a lua nova, entre danças e ao som, imperceptível, de um instrumento mágico, reúnem-se todos, debaixo de uma grande árvore, junto da Gruta do Museke (no Alto Chicapa, entre o rio Cuilo e o rio Luchico – estive lá – Latitude 10º 50´ Sul e Longitude 19º 12´ Este).


- O chefe da aldeia, diz: Ninguém deve ter medo do feiticeiro, ele é apenas um ser invisível, com poderes sobrenaturais, a qualquer momento, só castiga os criminosos, os imorais e quem não respeite os costumes.
 

Enquanto estive no Alto Chicapa, foi fácil perceber que a administração colonial do posto sabia conviver tacitamente com esta crença lendária, talvez por exercer uma acção benéfica e dissuasora contra os assassinos e os malfeitores.

Efectivamente, apesar do medo, ouvia-se nos quimbos: O feiticeiro nunca mata ninguém sem ter um bom motivo, porque até um engano trás o feitiço de volta para liquidar o autor do feitiço ou um elemento da sua família.


No entanto, no meio de toda esta crendice e medo, ainda havia pessoas sem escrúpulos que se aproveitavam da situação para práticas especulativas e abusos em proveito próprio.
 

Finalmente! Convivi com algumas pessoas, ditas mais cultas, aprovadas em estudos liceais, próximas da cultura europeia, que afirmavam terem deixado de acreditar nestas crenças e até diziam, são “matumbos”, mas… lá no fundo, nunca estavam tranquilos e felizes, acabavam por ficar apáticos e derrotados com o medo do poder dos espíritos e dos feitiços… deixavam de conhecer o amigo e era muito difícil traze-los de novo à realidade.
 

A seguir - A doença

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 17.09.09 às 00:18link do post | favorito

Adormeci muitas vezes na região Luatamba / Canage, em Angola, ao som dos “tambores” tocados num batuque lá longe, a realizar-se algures. É claro que um batuque é o oposto de uma canção, os seus ritmos são nervosos, um pouco bárbaros e não nos deixam dormir. Ficava a ouvi-los pela noite fora, trazidos pelo vento à mistura com os sons da selva, até que o sono me vencia.
 

Assisti a alguns, e não é sem uma ponta de saudade que os recordo a todos.
 

Era uma vez um batuque que se realizava na sanzala de Samunge, perto do Alto Chicapa, e cujo rufar dos tambores me impeliam a ir até lá. Já na tarde anterior eu tinha lá estado, a assistir ao batuque dos mais novos.
 

 

Desta vez, era o batuque dos adultos, a noite da Tchisela, um batuque "a sério".
 

Um batuque, é mais do que uma dança, são cânticos, movimentos e atitudes, que se projectam intensamente em todos os momentos da vida deste povo. Está presente em cerimónias de simples diversão, de magia e em diversos rituais, como a iniciação dos jovens ou o casamento. É pobre, na coreografia das danças e na letra das músicas, mas em contrapartida, há muita vida, um ambiente misterioso, muita sensualidade e intensos momentos de emoção, beleza e alegria.

 

Sá Moço, com ar de quem sabe, dizia-me para ir até lá, que há muitos mistérios escondidos na noite do batuque, nas fogueiras e na projecção das enormes sombras dos corpos dos dançarinos.
 

Muito antes de chegar, lá ao longe… Puum, Puum, Puum… no silêncio de uma noite envolta num maravilhoso manto de estrelas, ouviam-se os sons e o eco dos gomas e dos tchinguvos (tambores) a chamarem os convidados.
 

A chegada foi edílica, e… talvez… assustadora.
 

Próximo das cubatas, no cercado da festa, ardiam as fogueiras, com fortes labaredas em espadas de fogo, onde se projectavam sombras fantásticas e gigantes agitados. Eram às centenas os vultos esbatidos a dançarem e a tocarem, ou a fumarem em silêncio a sua mutopa (cachimbo).
 

 

Os tocadores imprimiam um ritmo frenético aos seus tambores, que aqueciam periodicamente ao fogo, para retesarem ainda mais as peles que vibravam retumbantemente acelerando ainda mais o rodar dos dançarinos no louco rodopio do batuque.
 

Nada era feito ao acaso.
 

Ainda recordo as palavras do chefe da aldeia na sua voz forte, a dizer: Esta dança não pode acontecer sem as mulheres. Tudo é permitido, não há maridos nem esposas, unicamente homens e mulheres. Por conseguinte, quem tiver ciúmes que vá para casa ou se deixe ficar com as mulheres junto da fogueira. Deixem as rixas, as inimizades e os maus instintos lá fora, aqui, é só para comer, beber, fumar, dançar e gozar a vida com alegria e bom humor.
 

Hangane-nu cafema (dançai bem).
 

Numa grande roda, com homens de um lado e mulheres do outro, dançando e entoando uma monótona canção com um motivo musical que se repete indefinidamente, alternam no centro da roda, alguns homens, que se agitam de uma forma espantosa, e as mulheres, que se desdobram em formas corporais provocantes de movimentos circulares com o desejo a subir, e a crescer sempre.


Noite dentro, apareceram outras dançarinas, muito jovens, esbeltas, de seios firmes, parcialmente cobertas com um pano colorido (quitengue), solto ou preso à cintura, e ornamentadas nos braços e nas pernas com argolas e pulseiras feitas de minúsculas cabaças, produzindo um novo som, numa noite arrepiante, excitante e sensual.
 

É esse louco rodopiar do batuque que arrasta, uns para os maiores excessos de sensualidade e convida outros a ficarem acocorados junto à fogueira fumando silenciosamente a sua mutopa, sem pensarem no batuque ou até, a ficarem longe do mundo.


Foi, sem dúvida, uma noite vivida, uma daquelas inesquecíveis noites africanas, quentes e banhadas por estrelas como não há igual, de festa rija, misteriosa, ardente e agitada, onde todos, de uma maneira ou de outra, se divertiam.
 

Apesar de ser um militar conhecido, embora estivesse à civil, ninguém, em momento algum, me hostilizou. Fizeram jus à proverbial hospitalidade africana. Mesmo em tempo de guerra, aquele povo acolheu-me no seu seio de braços abertos e tratou-me exactamente como se fosse um seu membro. Enquanto lá estive, senti-me bem, participante e parte integrante daquela terra, como se tivesse ali nascido ou sempre vivido. Como em muitos outros dias, também nesta noite, senti África, vivi África e fui África.
 

 

A seguir - Mulheres de fogo

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 10.09.09 às 22:04link do post | favorito

Uma das facetas mais curiosas é a que é dada, como no texto anterior, pela chamada literatura oral e o modo como a contam, aqueles que a sabem contar.


É geralmente ao cair da noite, junto a uma fogueira e num jango ou tchota (penso que é este o nome), que se contam as melhores histórias, muitas nunca ouvidas, sobre homens, aventuras, animais, seres… e muita, muita invenção.

 


Quando contam, acompanham toda a narração com mil gestos e trejeitos como se estivesse a acontecer algo. O contador levanta-se, deita-se, salta, grita, emita animais e muitos outros sons.


É uma autêntica representação viva que acaba por envolver todos.


Foi neste jango que ouvi, da boca dos mais idosos, mais uma lenda oral Tchokwe sobre a sua ascendência divina.

 

 

Nzambi ou Calunga (Deus), depois de ter criado o Mundo mandou Samuto (homem) e Namuto (mulher) povoar a terra com os seus descendentes.


Entregou a Samuto uma enorme cabaça e um pequeno embrulho, com a recomendação de só os abrirem quando encontrassem uma grande serra.


Desconhecendo os seus sexos, Samuto e Namuto caminharam na Terra até ao Congo, onde encontraram a tal montanha indicada por Nzambi.


Samuto, abriu a cabaça e dela saíram todos os animais que deveriam povoar a Terra. O embrulho como cheirava muito mal lançou-o fora.
 

Namuto, ao saber o que tinha acontecido ao embrulho, censurou-o e exigiu-lhe que o fosse buscar.
 

Samuto, depois de várias tentativas, sem sucesso, foi ter com Nzambi, contou-lhe o que tinha acontecido e que estava muito arrependido. Nzambi, disse-lhe que voltasse à Terra, onde tinha deixado Namuto e levasse o cão até ao local onde tinha abandonado o embrulho, e aí o soltasse.


Samuto, assim o fez. Passado pouco tempo o cão apareceu com o embrulho na boca.


Samuto, ao mostrar o embrulho a Namuto, esta manifestou-se muito contente batendo-lhe no baixo-ventre. Como este se queixou com muitas dores, Namuto examinou-o, chegando à conclusão que eram diferentes.


Acabaram por ter um filha de nome Naconde, a qual veio a unir-se com um homem chamado Cassai, vindo não sei de onde, e cujos cinco filhos e três filhas deram origem aos actuais povos da Lunda.
 

A seguir - Batuque em Samuge

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 05.09.09 às 23:35link do post | favorito

Nos anos 70 a história de muitos povos africanos, ou não era conhecida, ou então, não a divulgavam.


Durante a minha passagem pela região do Alto Chicapa, tive a sorte de ouvir um pouco dessa história. A ausência de documentos era evidente e inquestionável, no entanto era sempre possível chegar à transmissão oral, passada de geração em geração, onde a palavra, a honra e a figura dos chefes (muatas) faziam fé.


No final de uns rotineiros cinco dias nas matas da margem direita do rio Cuílo, a que uns chamavam de patrulha e outros de operação militar, convidei o Sá Moço para beber uma cerveja na “loja do Capela”.

 


É em tempo de guerra que se limpam as armas, era… o que eu costumava dizer, mas por outro lado adorava os momentos de paz e uma boa conversa.

 


Enquanto as garrafas de cerveja se amontoavam numa mesa improvisada, com alguns convidados de ocasião a aparecerem, uns pela bebida, e não só, e outros para mais tarde relatarem toda a conversa ao Sr. Chefe de Posto, um jovem de borbulhas na cara como eu, ouvia coisas interessantes e os muitos modos de vida, o primo que estava na Jamba e costumava visitar as duas mulheres no quimbo, o sexo que era praticado obrigatoriamente de lado, a quase aceitação do adultério…
 

Sabia que estava entre um povo tradicionalmente muito reservado, mas era nestes momentos, um bocadinho antes de os olhos ficarem vermelhos, que todos eles se soltavam, nas conversas e… no rancor, se conheciam as suas intenções, o que tinham de bom, as muitas tradições e a imensa história.
 

Sem estar premeditado, perguntei ao Sá Moço se sabia quem eram os seus antepassados, quiôcos.


- Quiôcos não! Tutchokwe!


Depois de um pequeno silêncio, lá começou por dizer:
- Noutros tempos, o rio Congo (o nosso conhecido rio Zaire) era atravessado por povos vindos das montanhas, umas montanhas geladas, lá para norte, onde há um grande mar (a região dos grandes lagos).
- Os mais velhos também contam que as primeiras tribos a chegarem à Lunda, foram os Bungos, um povo de agricultores, pescadores e caçadores, e os Balubas, um povo errante de caçadores.
 

- Sá Moço! E o povo que já vivia na Lunda?
 

- Esses, são os filhos de Nzambi (Deus)!
 

- Continua! É muito interessante o que estás a contar.
 

- Então, a tribo dos Bungos, organizada em aldeias de famílias, cada uma com o seu chefe, obedeciam ainda a um chefe superior, o conhecido Xacala.
- Xacala, era um grande chefe! Dizem, que foi espancado pelos filhos! Antes de morrer, pediu a todos os chefes das aldeias para se manterem unidos e formarem um estado, reconhecendo como sua única herdeira e senhora das terras a sua filha Luégi, a quem deixava o Lucano, uma bracelete de braço, símbolo dos grandes chefes de sangue real.


- Luégi, que tudo indicava viesse a casar-se com um dos chefes, encontrou-se um dia com o caçador Ilunga, filho do chefe dos Balubas, com quem veio a casar. Da união nasceu o filho Noeji a quem foi dado o título de chefe Muatchianvua (senhor de todas as terras).


- Após o casamento de Luégi com Ilunga, os Bungos desuniram-se. Criaram-se muitas desordens tribais e aconteceram muitas dissidências.


- Muambumba, primo de Luégi, um dos descontentes, partiu com a sua comitiva para a região do Alto Chicapa, onde, próximo da nascente do rio Cassai, formou e tornou-se chefe de um novo reino, Tchiboco ou Tchokwe (quiôco).

 


Tudo o que ouvi e aqui contei diz respeito à tradição oral transmitida de geração em geração, tal como as nossas lendas. Como é óbvio, tudo isto é falível e talvez de informações incorrectas, mas foi assim que as ouvi, portanto é assim que as conto.


Ainda me lembro, muito bem, daquele fim de tarde, daquela mesa e ainda, de alguém acrescentar que os antigos eram guerreiros cruéis, dominavam e atacavam as outras tribos, assaltavam e saqueavam os povoados de onde traziam, como espólio, os haveres, e as mulheres e as crianças que reduziam a escravos. Aos homens vencidos cortavam-lhe a cabeça.
 

A seguir - Um contador de histórias

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 20.08.09 às 22:57link do post | favorito

Aqueles que leram o meu trabalho, Tchicapa, o final da viagem, certamente deram conta de algumas críticas e comentários.

 

Independentemente do juízo feito, procurei ser justo, e evitei a ficção.


Neste segundo trabalho, Conversas, com Sá Moço, elas vão voltar a aparecer, aqui e acolá, sempre sem intenções políticas ou de rancor.


As reflexões, deixo-as a outros mais doutos.
 

Como no primeiro trabalho, apresento-me tal como sou, com defeitos e a virtude de ser sincero e interessado com quanto se passou na nossa passagem por África, por vezes com desgraçados dias.
 

Os meus próximos textos, evitando a fixação psico-traumática, vão abordar a singeleza da vida, não esquecendo que sou, somente, um dos muitos militares milicianos que passaram por Angola e que a tais memórias dedica um olhar calmo e enternecido.
 

 

Em consequência, tratarei, a partir de hoje, de rebuscar recordações e conversas com um homem natural da região do Tchicapa, para, ao mesmo tempo que as partilho, lhes devolver alguma da antiga e perdida clareza.


Nas minhas muitas vidas (não de nascimento), entre sonhadas e verdadeiras, nos distantes anos da década de 1970, encontrei o Sá Moço, um homem katchokwe (quiôco) com cerca de 40 anos de idade. Um ser humano, auto-suficiente, que tinha falta de tudo, mas não sentia falta de nada.
 

 

 

Recordo-o com admiração.

 

Sem o ser, era engenheiro, médico, psicólogo, pisteiro, e… na maior das calmas e com muita inocência lá ia dizendo que o IN (inimigo) também precisava de ajuda, quando aparecia na aldeia.
 

Quem, algum dia, foi militar, costuma ser um pródigo contador de histórias, umas ligadas à guerrilha e outras, de coisas mais singelas, no entanto, nos textos que se seguem, vou escrever sobre a vida de um povo que foi importante na minha formação e me transformou num eterno enamorado da natureza e das coisas belas e boas que ela nos proporciona.
 

 

Enfim, vou escrever sobre, as minhas vivências com o Sá Moço, a vida no quimbo, as festas, os modos de vida e de figuras típicas que por lá encontrei, das muitas pessoas, boas e interessantes que conheci, e ainda, só um pouco, dos seres francamente racistas, grosseiros, brutos e porcos, que também os havia, e… que hoje, em 2009, à sombra da democracia e aproveitando a ingenuidade de muitos, aparecem, ora disfarçados de rambos ora de defensores da verdade, que lhes convém.
 

Termino com a seguinte frase: Em Portugal, cada ex-combatente que morre é uma biblioteca que se queima.
 

Carlos Alberto Santos

 

A seguir - Coisas e sensações do Leste de Angola

 


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