Naquela época (1972/74), os medos e os feitiços ocupavam um lugar de muito destaque na vida do povo e das aldeias (quimbos) ao redor do posto administrativo do Alto Chicapa, no município do Cacolo.
Confesso! Quando hoje penso, naquela carga psíquica, acho, que só serei capaz de escrever simples e despretensiosos apontamentos para temas tão complexos, onde, tantas vezes, me senti incapaz de fazer juízos e compreender muitas das representações e manifestações colectivas.
Era um mundo sobrenatural, cheio de contrastes.
Acreditavam e temiam a um Deus supremo, Nzambi, que rege o mundo e os homens, e, simultaneamente, também aceitavam a existência dos espíritos, quase sempre maus, que andavam perdidos na noite em lugares solitários. Parecia-me tudo tão estranho e de difícil entendimento, mas, sinceramente, era uma fonte inesgotável de emoções e de mistério. Tantas vezes, comparei tudo isto com a crendice do povo das nossas aldeias, nas almas penadas e nas do outro mundo.
Na doença, quando achavam que os espíritos se tinham apoderado do corpo realizavam uma mahamba, uma cerimónia onde parecia estar-se num mundo de magia, cheia de elementos adjuvantes, amuletos, muitas pessoas a assistirem ou a dançarem com a música dos thinguvos e dos gomas e um final… cheio de mistérios, numa possessão assustadora.
Na morte, diziam que o espírito do falecido não ia ficar tranquilo e sossegado além-túmulo, se não lhe fossem feitas as devidas cerimónias festivas, durante uma ou em várias noites, com muita comida e bebida, num longo batuque. Tudo feito, como sendo a condição indispensável à sua dignidade e ao seu sossego. Todos, mesmo todos, acreditavam, que se tal cerimónia não existisse ou não fosse digna, o falecido transformava-se num espírito mau, atormentando a aldeia.
O feiticeiro (tchinganga), manobrando na sombra, sem ninguém o ver ou o conhecer, era muito temido. Achavam-no poderoso, e com capacidades para causar, mesmo à distância, terríveis malefícios aos corpos e aos espíritos. Todos conheciam, muito bem, as formas de actuação, os venenos colocados na água ou na comida e os castigos emanados, à distância, por estatuetas ou forças espirituais. O medo do feitiço determinava a qualidade da vida do povo e levava-os a optarem por um dia-a-dia sem grandes haveres ou desejos e a pensarem, que amanhã podem estar mortos.
Sá Moço, dizia, tantas vezes, o futuro pertence a Nzambi (Deus), aos espíritos e aos feiticeiros.
Quando o questionei sobre estes assuntos, ficou… “cá, cá…” assustado e sem fala.
Mesmo assim, algumas semanas depois, lá consegui ouvi-lo dizer:
- O tchinganga é poderoso! Não se pode andar por aí a falar dele! Se suspeitar que alguém o descobriu troca-lhe o espírito e a personalidade, para nunca mais se lembrar do passado.
- Na aldeia… só mata ou faz adoecer as pessoas más e os assassinos, e… quando a justiça do chefe de posto poupa os malfeitores.
- Eu não sei nada! Os mais velhos é que contam! Durante a lua nova, entre danças e ao som, imperceptível, de um instrumento mágico, reúnem-se todos, debaixo de uma grande árvore, junto da Gruta do Museke (no Alto Chicapa, entre o rio Cuilo e o rio Luchico – estive lá – Latitude 10º 50´ Sul e Longitude 19º 12´ Este).
- O chefe da aldeia, diz: Ninguém deve ter medo do feiticeiro, ele é apenas um ser invisível, com poderes sobrenaturais, a qualquer momento, só castiga os criminosos, os imorais e quem não respeite os costumes.
Enquanto estive no Alto Chicapa, foi fácil perceber que a administração colonial do posto sabia conviver tacitamente com esta crença lendária, talvez por exercer uma acção benéfica e dissuasora contra os assassinos e os malfeitores.
Efectivamente, apesar do medo, ouvia-se nos quimbos: O feiticeiro nunca mata ninguém sem ter um bom motivo, porque até um engano trás o feitiço de volta para liquidar o autor do feitiço ou um elemento da sua família.
No entanto, no meio de toda esta crendice e medo, ainda havia pessoas sem escrúpulos que se aproveitavam da situação para práticas especulativas e abusos em proveito próprio.
Finalmente! Convivi com algumas pessoas, ditas mais cultas, aprovadas em estudos liceais, próximas da cultura europeia, que afirmavam terem deixado de acreditar nestas crenças e até diziam, são “matumbos”, mas… lá no fundo, nunca estavam tranquilos e felizes, acabavam por ficar apáticos e derrotados com o medo do poder dos espíritos e dos feitiços… deixavam de conhecer o amigo e era muito difícil traze-los de novo à realidade.
A seguir - A doença
Carlos Alberto Santos