A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 20.12.09 às 22:45link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Pelo seu trabalho em casa e nas lavras, e pela maternidade, a mulher assumia uma função económica e social abrangente. Cabiam-lhe as tarefas mais árduas e uma posição importante na comunidade, qualificada e não deprimente, e nunca inferior à do marido como se poderia pensar inicialmente.
 

 

Era desde tenra idade que o seu casamento era ajustado. Durante a fase da infância, a sua educação processava-se no convívio da família. Na adolescência, já muito independente, em tudo, gozava de uma ampla liberdade sexual, concedendo os seus favores a quem lhe agradava. Depois, durante o noivado, tornava-se exigente na forma e na frequência das visitas, e como desejava ser presenteada pelo homem que será o seu futuro marido, caso contrário era esquecido.
 

 

Quando chega a primeira menstruação, retira-se para a casa das raparigas menstruadas onde aprende tudo o que uma mulher deveria saber (ler mais aqui).
 

Depois de pago o dote de casamento aos pais é colocada em casa do marido, assumindo dai em diante uma posição social importante e legitimada para uma união sexual reprodutiva.
 

A nova fase da vida da mulher muda completamente, e é feita de inúmeras atribulações, onde até as relações sexuais e os contactos com o marido lhe serão dispensados à vez ou por turnos.

 


O casamento, que era indissolúvel, podia ser interrompido pela morte, pelos maus tratos ou pela esterilidade da mulher.


Perante a esterilidade feminina, Sá Moço dizia: - Mulher infecunda é mulher moribunda, mas… em muitos casos é o marido, o responsável, que, pelo excesso de mulheres, a idade avançada ou a incapacidade nas suas faculdades, fica inapto para a sua acção procriadora.

 

Por isso, é frequente, devido ao desejo de maternidade, que prevalece sobre qualquer outro sentimento, arranjar um homem, com ou sem o conhecimento do marido, para lhe dar os filhos desejados.
 

A mulher era sempre desejada, por dar a vida, e ser a obreira da família e do poder económico, mas também era temida, por na menopausa ter mau humor e a acharem com poderes maléficos, e daí a considerarem, algumas vezes, uma feiticeira.
 

A seguir - A alimentação

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 18.12.09 às 17:38link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

 

O quioco atribuía à infidelidade da mulher, o termo sedução.
 

O adultério, em certas condições, até era bem tolerado, porque era, muitas vezes, o próprio marido que contribuía para a mulher se tornar adúltera, não só por algum abandono declarado mas também pelo proveito material que podia tirar disso.
 

Havia casos, em que homens idosos, rodeados por várias mulheres, duas ou três muito novas, longe de serem a figura do marido ultrajado, aproveitavam-se da situação para aumentarem os seus proveitos, naturalmente, oriundo, delas seduzirem ou deixarem-se seduzir.
 

Noutros casos, o desejo de descendência era tão grande que o próprio marido consentia o adultério e muitas vezes com um homem indicado por ele. Este, porém, não tinha qualquer direito sobre a mulher e nem estava obrigado a entregar qualquer contribuição material.
 

Na região do Alto Chicapa, para além de um ou outro caso sazonal vindo de fora, não havia comércio sexual, como em Luanda ou em Henrique de Carvalho, havia sim a tal sedução ou até, talvez, um favor recebido sem pagamento predefinido, onde, no fim, entre sensatos, nunca deveria ficar esquecida a troca material pela utilização do corpo da mulher ou… até do homem.
 

A sedução era frequente e quase sempre banalizada, mas não se pense que a moralidade estava ausente, pelo contrário haviam muitos valores de vida, impossíveis de ser avaliados à luz do pensamento e da mentalidade europeia.
 

Nos casos mais complicados, que eram raros, o adultério era encarado como um roubo, e, como tal, o ladrão tinha de indemnizar o roubado com um pagamento em dinheiro, gado ou outros utensílios.
 

Contou-me o Sá Moço, que em tempos, antes de a tropa chegar, havia o costume frequente da troca mútua das mulheres, por uma ou mais vezes, entre dois casais.
 

Efectivamente, passados tantos anos… nada é assim tão diferente.

 

A seguir - A mulher quiôca
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 16.12.09 às 00:35link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Naquela época e na região da Lunda era normal a pluralidade de uniões, em família, de um homem com várias mulheres, onde os mais novos tinham três ou quatro, e os mais velhos, e alguns sobas, chegavam aos dezasseis casamentos.
 

Tive a sorte e o privilégio de conhecer um desses homens, “chefe” de uma grande família e de uma vasta prole, uma autêntica comunidade. Tinha uma idade avançada, era sábio e estava sempre sorridente. Vivia feliz, de uma forma imparável e jovial, parecia ser detentor de um segredo. Era apaparicado, pelas várias mulheres muito jovens, mesmo muito! Dizia sempre a sorrir: - Nenhuma tem razão de queixa!
 

Só por curiosidade, mas em sentido oposto, na região do Luatamba, Moxico, havia alguns casos de poliandria em que uma mulher vivia casada com dois ou três homens. Embora nunca tivesse contactado, de perto, com uma comunidade deste tipo, contavam que o primeiro marido era quem detinha todos os privilégios e direitos, e era, sempre, considerado o pai legal de todos os filhos.
 

Voltando à Lunda. A poligamia era o sistema familiar usual, onde, fosse qual fosse o número de mulheres do polígamo, havia, entre elas, uma, que era a preferida e mais confidente, a principal (muári), que usufruía um tratamento especial na gestão do lar, na vida do marido e no que vestia. As outras, as raparigas (tusula), eram tratadas em pé de igualdade nas relações sexuais, em parte do vestuário, nos trabalhos domésticos e nas lavras.

 


Dos, diversos, contactos, que tive ao longo de dois anos e meio de permanência, na região, percebi que a poligamia, não era só o sexo e os filhos, era o poder económico desenvolvido por cada uma das mulheres, era a aliança entre famílias e era a posição social do homem na comunidade.
 

Durante uma patrulha militar, no final de um dia, entrei em diálogo com o meu bom amigo e guia Sá Moço. Estava, numa prefeita contemplação do horizonte e perdido no tempo, a mascar raízes.


- Então Sá Moço, estás a comer raízes?
 

- Sim! É, só, remédio, para dar força! As mulheres esperam-me!
 

- Todas?
 

- Sim, todas! As mulheres são ciumentas e não se podem alterar ou adiar as visitas conjugais. Todas pedem para ser contempladas, de igual modo, com força, com as regras acordadas e com uma duração de quatro dias.
 

- E… quando o homem não pode, por doença ou está velho?
 

- Quando o homem está doente, a mulher, pelo casamento, está obrigada de fidelidade ao marido.
 

- Mas… quando não pode, mesmo… por ser velho?
 

- Que há-de fazer uma mulher nova, a quem a família entregou a um marido idoso com mais mulheres, filhas da mesma idade e, muitas vezes, já incapacitado de cumprir os seus deveres de progenitor?
 

A seguir - Adultério

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 13.12.09 às 23:22link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

O homem e a mulher só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade, os filhos eram o principal alvo.


Quando a mulher engravidava, toda a sua vida se alterava. Era envolvida por muitos cuidados, como o repouso e o fim do trabalho nas lavras. Às refeições, passava a ingerir seivas fortificantes e mastigava raízes anti-vermes.


No início da gravidez, consultava o adivinho (taí) para saber quais as cerimónias e os amuletos protectores que eram necessários para o bom desenvolvimento e saúde do feto e… ficar longe de feitiços e maus-olhados.
 

As relações sexuais e os contactos com os homens também eram suspensos.
 

Afirmavam, que, durante a gravidez, a mãe não podia comer certos alimentos, como, entre outros, a carne de porco, senão o filho nasceria com a cara em formato de porco.
 

No último mês da gestação a mulher mudava-se para uma casa mais pequena, mais rudimentar, ou para a cozinha onde ia ter a criança.
 

Devido a medos, a uma deficiente gestação ou outros motivos que nunca cheguei a perceber, havia casos, em que as mulheres iam ter o filho, completamente sozinhas, fora da aldeia, em plena mata, e apenas encostadas ou agarradas a uma árvore. Lidei, acidentalmente, com uma situação destas, na orla da pista de aviação do Alto Chicapa, onde o gemido de uma mulher e o choro de uma criança me atraíram.

 

 

Não sabia o que estava a acontecer, mas era algo diferente.

Com alguma irresponsabilidade, e totalmente desprotegido, aproximei-me.

Felizmente, era uma criança a acabar de nascer bem e uma super mãe a fazer todo o trabalho, parto e pós parto.

 

A minha acção foi paupérrima e, acima de tudo, envergonhada, mas aquela mãe só me deu liberdade para chamar a primeira mulher, que visse na aldeia dos GEs.

 


Quando os partos ficavam muito difíceis e eram assistidos por uma mulher mais velha (uma espécie de parteira), esta introduzia na vagina da parturiente folhas de uma árvore, para ajudar à dilatação, e ao mesmo tempo ia-lhe perguntando os nomes dos homens com quem tinha tido relações sexuais, além do marido, e insistia sempre para que não ficasse nenhum esquecido (ler mais em Missão Humanitária).


Acreditavam que as dificuldades do parto eram devidas às muitas relações extra conjugais e que a expulsão do feto não seria possível sem a indicação de todos os homens com quem tinham mantido relações.
 

A seguir ao parto, a mulher bebia uma infusão de folhas com propriedades cicatrizantes, fazia lavagens vaginais com a água de folhas de mandioca e tomava vários banhos frios no rio.

 


Sobre o leite materno, foi-me contado: Quando uma mãe não tinha ou lhe faltava o leite, a criança era alimentada por uma outra mulher da família ou da aldeia com filhos latentes e se isto não fosse possível, uma das outras mulheres do marido ingeria umas raízes, que em dois dias lhe provocava o aparecimento de leite.
 

 

Era engraçado ver estas crianças a acompanharem a mãe para todo o lado e em todos os trabalhos, repousando sobre as suas costas com os seios sempre à sua disposição, logo que o desejavam.
 

 

A mulher revia-se nos filhos, sempre com um acompanhamento e carinho inigualável desde o berço até à sua vida de adulto, num círculo inquestionável, que nenhuma vicissitude podia romper.

 

Os valores familiares deste mundo quioco eram muito fortes, só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade!
 

A seguir - Poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 06.12.09 às 18:55link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Começando pelo fim do texto, um casamento era um acordo entre duas famílias.
 

Relativamente a este tema o Sá Moço era muito afirmativo, orgulhava-se da sua progenitura e contava-me com alegria: - Quando nasceu o meu primeiro filho mandei reservar uma filha, a nascer, de um casal amigo para que os nossos laços de amizade ficassem mais fortes com o casamento deles. No final da conversa, o Sá Moço ainda acrescentou: - Mulher que não se compra, é prostituta!
 

Entre os quiôcos, o casamento era polígamo e efectuado através da compra da mulher. Nunca era um acto comercial nem dava o direito ao marido a uma futura venda, era, apenas, o processo de transferência da tutela dos pais, a permissão de coabitação, de gerar descendência, tomar conta do lar e dos filhos, trabalhar nas lavras e ao longo do tempo ganharem consideração e respeito mútuo.
 

Tudo começava com uma espécie de noivado.
 

Quando a noiva vivia em casa dos pais o futuro marido fazia-lhe visitas assíduas para que a sua presença futura não fosse a de um estranho. Oferecia prendas à noiva e à família.
 

Quando, esta, coabitava com o homem prometido passava o tempo a ajudar as outras mulheres, em pequenos trabalhos, e a visitar com regularidade os familiares da sua aldeia, onde ficava algumas semanas. Nestas ocasiões, aconteciam, com naturalidade, algumas ligações amorosas com um qualquer rapaz do seu agrado, sem que isso tivesse alguma importância para o futuro marido.
 

As núpcias, que começavam a seguir à primeira menstruação da mulher e só depois de o homem ter feito a entrega do valor da compra aos pais, era a cerimónia decorrente da colocação da noiva em casa do marido (podem ler mais detalhes em: A iniciação das raparigas).
 

A comunidade organizava um cortejo nupcial, com a noiva, os seus familiares e convidados, os familiares do noivo e várias crianças, até à nova residência na aldeia do marido, onde era recebida em festa, pintada com caulino e sentada sobre uma esteira à porta da casa. De seguida, juntavam-se os dois, sobre a esteira, onde se marcavam mutuamente com uma massa branca na fronte e no peito.

 

A noiva depois declarar, para que todos a ouvissem, que tinha atingido a idade adulta, tocava na perna do marido e iniciava um bailado nupcial, marcando o ritmo com o ondular do corpo, dirigindo-se sempre para dentro de casa.
 

O toque na perna era interpretado por todos como o reconhecimento do marido, a união no lar e a entrega sexual.
 

Na primeira noite, em pleno batuque, os noivos ficavam na casa, onde já dormiam juntos.

 

Como não podiam ter relações sexuais nas duas primeiras noites, faziam-se acompanhar por uma criança para dormir no meio deles.
 

No dia seguinte comiam uma refeição de frango, sem nunca partirem ou trincarem os ossos, numa representação quase pública em que a devoção, à fecundidade da mulher e ao respeito mútuo do casal, era apoiada e confirmada por todos.
 

Como não acompanhei de perto estes momentos ou não lhes dei a devida atenção, Sá Moço teve o cuidado de me alertar para a importância deste facto e acrescentou: - Esta é a única vez que marido e mulher comem juntos, daí em diante comem separados. Primeiro o homem e depois a mulher e os filhos, quando os houver. Comer juntos representa ser de descendência comum e estarem em consanguinidade, o que os impede de terem relações sexuais por ser equivalente a uma relação incestuosa.
 

Na terceira noite, depois de o homem ter prestado culto aos antepassados comuns, colocava uma pena do frango entre os cabelos. Quando a mulher o imitava, estava a dizer-lhe que a partir daquele momento ficava pronta para uma intensa relação sexual, que, com toda a naturalidade, se prolongava por três a quatro dias, sem saírem da casa.
 

Este casamento, acordado inicialmente por duas famílias amigas, que passava pela fase de compra e pelo conhecimento e respeito mútuo da mulher e do homem, só seria confirmado após o nascimento do primeiro filho.
 

A seguir - O nascimento

Depois - A poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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