Nenhuma observação simples, como as que fazia nas cerimónias e na manifestação dos costumes do povo quioco, me podia levar ao conhecimento do que têm de mais íntimo e quase impenetrável, o psíquico.
Era fácil observar toda a sua vida material, que até confiantemente punham a descoberto, mas quando se queria perceber a vida psíquica, as dificuldades eram enormes, encobriam os segredos e os mistérios.
Mesmo assim, ainda consegui lidar com uma grande diversidade de elementos ligados aos rituais da medicina.
Aqui, dominavam duas figuras, o Tchimbanda – o homem que cura as doenças do corpo, um curandeiro, uma espécie de fisioterapeuta e o único que conhecia os minerais e as espécies botânicas – e o Taí – o adivinhador -, um homem com muito prestígio entre os do seu quimbo e dos que ficavam próximos.
Quando alguém estava ou se sentia doente, o adivinhador era sempre consultado em primeiro lugar. A consulta começava, quase sempre, num ambiente de segredos e sinais.
De um cesto, chamado de adivinhação, colocado estrategicamente junto do doente, começava por retirar e colocar no chão, com gestos ritmados e misteriosos, um arco de metal a representar a aldeia. Depois, sucessivamente, ia colocando figuras de madeira, que eram o doente e alguma da sua família, patas de galinha, ossos, pedras, moedas… tudo envolto num líquido oleoso e avermelhado.
A verdadeira cerimónia de adivinhação começava com o Taí a invocar os espíritos ancestrais, a soprar num pequeno chifre de cabra, a comer, o que parecia ser comida, e a recitar palavras rituais sobre o que via.
Finalmente, sentenciava o mal.
Se o indivíduo estava com problemas psíquicos, informava a família que era um feitiço, qual o espírito irado, as rezas e os pagamentos a fazer e o que era necessário para a realização da mahamba, uma cerimónia de exorcismo para afastar o mal.
Se a doença era do corpo, então tinha de consultar o Tchimbanda, porque só ele, conhecedor das espécies botânicas, infusões, seivas, raízes, minerais e venenos, o poderia curar.
Em 1972, na região do Luatamba / Canage, vivi, como se costuma dizer, portas meias com um curandeiro, que tinha as duas valências, Taí e Tchimbanda. Embora fosse a pessoa mais importante da comunidade, eu nunca tive uma boa impressão sobre os seus modos de vida, achava-o um parasita, subornável.
Vivia comodamente à custa das crenças, explorava quem lhe caísse nas mãos e em caso de julgados, recebia de ambas as partes. Perante um doente em estado terminal, apresentava-se à família como um salvador. Dizia: - Será tratado, mas todos sabem que já está morto, embora respire.
Em 1974, no Alto Chicapa e nas aldeias próximas, devido ao trabalho desenvolvido pelo grupo de enfermagem da nossa Companhia, a 3485, os adivinhadores já tinham perdido quase toda a sua influência.
Sá Moço, sempre muito atento e temerário, nestas coisas, embora conhecendo melhor do que ninguém a actuação dos nossos enfermeiros e a mais-valia do médico, a nossa presença constante nas aldeias, o uso de um helicóptero para evacuação de doentes graves e os muitos pacientes que se deslocavam diariamente para tratamentos, ao posto de enfermagem do quartel, afirmava: - As doenças são provocadas por feitiços ou por espíritos, nunca são naturais.
Os mais novos, com o êxodo de algumas comunidades rurais para os centros urbanos, questionavam as crendices dos mais velhos e a utilidade de certas manifestações, apresentavam-se como pessoas importantes e copiavam a nossa cultura, embora, muitas vezes, segundo os piores métodos europeus, vadiavam, bebiam muito e viviam na chamada vida fácil.
(Dedico este texto ao Dinis Reis, ao José Vinhas, ao Manuel Carvalho e ao Luís Carvalho)
A seguir - A mahamba
Carlos Alberto Santos