A guerra colonial também foi uma ruptura em cada um de nós. Deixou-nos muitas interrogações. Foram-nos ensinadas muitas técnicas de combate, algumas de sobrevivência, e só raramente fomos preparados para o regresso à vida civil.
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publicado por Alto Chicapa, em 06.02.10 às 01:08link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


Jean de La Bruyére disse: “a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”.

 

Para mim, a vida deve estar entre o sentir e o pensar, entre a tragédia e a comédia, porque só sentindo uma tragédia, saberemos o que é uma comédia, só estando envolvido entre risos e gargalhadas, saberemos o que é o mais triste dos dramas, só sentir não basta, só pensar é insuficiente…
 

Foi sem grandes risos ou pensamentos, que vivi durante dois anos e meio, entre 1972 e 1974, num mundo diferente, cheio de mistérios, de valores, de usos e costumes muito primitivos, numa região isolada muito pobre onde se travava uma luta constante com a natureza para a sobrevivência, e onde a mulher, paciente e activa, tomava conta de tudo e tinha tempo para ser fêmea e mãe dedicada.


Num raio de 300 kms residiam apenas meia dúzia de europeus.


Durante aquele tempo, senti, que, em silêncio, o povo sofria… com os fantasmas dos feitiços, com a prepotência dos chicotes dos cipaios, com a ignorância do colonos a cilindrarem tradições, com os militares a destruírem resistências e com a administração colonial a deslocar estrategicamente as aldeias.
 

Em 1975, depois da chamada guerra colonial ter terminado, vivíamos uma época em que muitas pessoas se interrogavam sobre o que efectivamente tinham feito os portugueses em África, onde os heróis já tinham caído com o rolar das estátuas, o arrear apressado da nossa bandeira sem uma digna passagem de testemunho, o abandonar de um povo a uma guerra civil e a realidade, ignorada pela revolução dos cravos, Generais Spínola e Costa Gomes incluídos, da aliança secreta anteriormente estabelecida entre Portugal, África do Sul e Rodésia para o plano de defesa para a África Austral denominada Exercício Alcora ou PAPO (em inglês), Organização Permanente de Planeamento Álcora, onde Portugal transferia para a África do Sul a capacidade de dirigir as forças militares para terminar com o “terrorismo”.


Publicar estes textos e o documento Tchicapa, o final da viagem, numa época em que toda a actuação portuguesa era posta em causa, não era tarefa fácil. A corrida política e económica para África e o choque entre grandes potências transcende em muito os temas que escrevi, que são a outra face da realidade, a da verdadeira África, que eu, europeu, gosto.
 

 

Prestes a dar por concluída estas breves reflexões, resta-me dizer, que foi tudo projectado para não deixar morrer as nossas memórias, sempre assentes num conjunto de acções e de afectos e sustentadas num passado que naturalmente, importa considerar.


Ao Sá Moço, e a todos, que directa ou indirectamente leram e possibilitaram a apresentação destes textos, obrigado.
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 03.02.10 às 22:56link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Eu gostava de falar com ele. Era um homem do Tchicapa que sabia contar coisas fabulosas sobre a guerra entre tribos, dos primeiros espelhos, de princesas raptadas por homem branco, dos revoltosos em 1961 e dos acontecimentos contra os colonos.
 

Falava-me de pedras com feitiço onde estava gravado o pé da Rainha N’Ginga e dos guerreiros invisíveis que logravam vencer tudo e todos e de tantas coisas que um branco, como eu, vindo de outra civilização, nunca sonhou ser possível.
 

E, também falava da família e dos seus filhos. – Um é assim, o outro assim, dizia ele, alteando a mão do solo, para me explicar o tamanho dos filhos.
 

Mas os seus olhos, perdiam vivacidade e todo o entusiasmo quando me falava do chefe de posto (kaputu) e dos cipaios quando faziam as rusgas na aldeia, durante o tempo das colheitas, e obrigavam muitos a ir trabalhar, debaixo do chicote, dos momentos difíceis durante a permanência dos combatentes da FLNA, e… quase chorava.
 

Depois voltava, a ser o mesmo, a desviar a conversa e explicava-me com todos os detalhes como se vivia no quimbo.
 

Não lhe conheci qualquer tipo de traição, mas era um teimoso, um negociador a favor dos seus e… apoquentava-se abertamente quando as coisas poderiam correr mal.
 

Sá Moço, um companheiro na selva, na guerrilha e no dia-a-dia, também foi, nestes textos, uma denúncia frontal para que não adormeçam as memórias e simultaneamente uma afirmação de esperança e confiança na vida.
 

Alto Chicapa / Angola, uma fonte inesgotável de ensinamentos, de emoções e de mistério.
 

A seguir - Conclusão

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 31.01.10 às 14:29link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


A lua e o sol
A lua era a companheira da noite, do mal, da doença e até da morte. O sol era a luz, o dia, a vida, a saúde e o alimento dos homens na terra.
 

Por este motivo, as conspirações, os acordos, os ditos, as estórias e as lendas, só eram contadas à luz da lua ou de uma fogueira.
 

Cidade de Saurimo
Saurimo deriva de Sá Urimbo, um chefe quioco que habitava aquela área onde foi fundada a cidade, também chamada de Henrique de Carvalho em homenagem ao general português.

 

General Henrique de Carvalho e o Muatianvua Sá Madiamba - Foto obtida, em 1973, de um quadro de 1886, existente numa das paredes da Tasca do Mais Velho (restaurante) na povoação do Cacolo / Saurimo.

 

Sá era título de paternidade dado a todos os homens que eram pais.

 

Depois da independência de Angola a cidade voltou a ter o seu nome inicial.
 

Administrador do Alto Chicapa
Chamavam-lhe o Kaputu.
 

Atitudes
A mão direita era usada para comer, para cumprimentar, oferecer, receber e para todos os actos de rotina, enquanto a mão esquerda era reservada para tocar nos órgãos sexuais e para excitar a mulher antes do acto sexual.
 

As pinturas brancas no corpo, com que apareciam muitas vezes, eram feitas com caulino (Pemba), significavam o bem, a verdade, a vida e a saúde.
 

Faziam segredo das atitudes mais intimas, tinham vergonha de gazear ruidosamente ou de satisfazer as suas necessidades fisiológicas se alguém estivesse nas proximidades.
 

Os homens usavam na cabeça, pequenos pentes de madeira (tissaculo?), alguns com arte e gosto.
 

 

Algumas palavras

Lunga           - Homem

Pfwo              - Mulher
Mwana          - Criança
Kanuke         - Moço(a)
Demba         - Galo
Tchari           - Galinha
Zambi           - Deus
Mwalva         - Sol
Kakweji        - Lua
Kai                - Cabra do Mato
Lukutu          - Pénis
Sundji           - Vagina
Meia              - Água
Lwiko            - Colher do pirão
Makoso        - Lagartas comestíveis que viviam na arvore Mukoso
Moyo             - Saudação
Moyo weno  - Saudação com mais respeito
Muata           - Chefe da aldeia
Muatianvua - Nome dado ao imperador do Império da Lunda
Jimbo           - Machado pequeno
Mutopa         - Cachimbo de água

 

 

 

A seguir - Sá Moço

Depois - Conclusão e final

 

Carlos Alberto santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 27.01.10 às 23:52link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Esta imagem, vinda do Alto Chicapa, e que só hoje vos deixo, quase no final dos meus apontamentos, é a de, O Pensador.
 

 

É uma bela estatueta Quiôca (Tchokwe), que representa um ancião. Na Lunda, o idoso tinha (ou tem) um estatuto privilegiado, por representar a tradição, a sabedoria, a experiência dada pelos anos e os segredos da vida.


O Pensador, um símbolo emblemático da cultura angolana, com origem numa tradição convencionada, o cesto de adivinhação, onde o adivinhador (Taí) usava, entre vários objectos, pequenas figuras esculpidas em madeira.


As primeiras figuras de O Pensador foram esculpidas no Dundo, por artesãos locais, no ano de 1947, e por iniciativa de alguns colaboradores da Diamang, a então Companhia dos Diamantes da Lunda.
 

A seguir - Notas soltas

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 27.01.10 às 01:00link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

O homem vivia quotidianamente de uma forma bastante calma. Muita vezes… até deixava transparecer alguma preguiça.


O seu principal objectivo, era ter uma família com o maior número de mulheres. Quantas mais mulheres, mais braços tinha para trabalhar nas lavras e mais prestígio adquiria com o aumento do número de filhos.
 

Para aumentar a sua riqueza, quando lhe era economicamente viável, casava com uma outra mulher, geralmente, mais nova, que a anterior. Era, assim, do trabalho das mulheres, que obtinha os rendimentos, que lhe permitia casar novamente, ter mais filhos e atingir uma posição social na comunidade.


Depois de atingir um certo estatuto e até o título de muata, mostrava-se, fumava muito, bebia e dava passeios em visita aos amigos e familiares.

 


Depois de passar ao grupo dos mais velhos, devido à experiencia de vida adquirida e aos saberes e tradições, era solicitado para dar conselhos e intervir como juiz de partes em conflito.

 


Quando ficava incapacitado, devido à idade, era sempre acompanhado pelos filhos ou pelas mulheres mais novas. Também era durante esta fase da vida, com um conhecimento amplo da comunidade e da vida, que lhe era atribuída, erradamente, praticas de feiticeiro e de ligações a forças sobrenaturais.


Para mim, era com muita dignidade que chegavam ao fim da sua vida.
 

A seguir - O Pensador

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 23.01.10 às 22:19link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74


Havia muitos afrodisíacos naturais. Utilizavam-nos ao mais pequeno sintoma de fraqueza e, em muitos casos, devido ao excesso de mulheres e a uma alimentação deficiente.
 

Nos meus apontamentos registei:
 

A planta Mundundo – Retiravam da entre casca uma espécie de raspas moles de cor avermelhada com as quais faziam infusões. Nós, os europeus chamávamos-lhe o Pau de Cabinda do Leste. A sua acção era tão intensa, que a excitação era capaz de durar toda a noite.
 

As Cantaridas – Um insecto, que depois de seco era transformado em pó. Quando necessário, era misturado numa bebida ou na comida para provocar uma excitação rápida e intensa.
 

A planta Mundonda – A acção afrodisíaca era obtida através da seiva e das raízes mastigadas. Era utilizada pelas mulheres, que queriam ter um maior prazer sexual.
 

A planta Mulolo – As mulheres usavam-na com frequência para receberem e darem mais prazer. A raiz desta planta era usada para friccionar a vagina e ajudar a distender e a dilatar os pequenos lábios e o clítoris.
 

Sá Moço, sendo, ele, consumidor frequente de afrodisíacos naturais, dizia-me com frequência.
- Tudo o que sirva para estimular o pénis (lukutu), excitar a vagina (sundji) ou provocar prazeres múltiplos, é bom, porque um homem ou uma mulher sem desejo, são cadáveres vivos.
 

A seguir - O homem

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 11.01.10 às 23:43link do post | favorito

Alto Chicapa / Angola 1972/74

 

Numa época e numa região onde a divisão sexual, era em tudo notada, o homem ficava com todos os trabalhos que exigiam uma apreciável força física, a construção da casa, o derrube de árvores, a caça, o auxílio da família, a compra de panos para as mulheres e do vestuário para os filhos. A mulher era responsável por todos os trabalhos domésticos, tratava da casa e dos filhos, ia à água e à lenha, preparava e cozinhava os alimentos, trabalhava nas lavras e ia à pesca.
 

Era na época das chuvas, com início em Setembro, que a mulher preparava as sementeiras na lavra.
 

 

A mandioca, a base da alimentação do povo quioco, era plantada por estacas, três a quatro em cada montículo de terra, com as pontas afastadas. Nos intervalos, em buracos abertos com o calcanhar, semeavam ainda milho e feijão.
 

Na altura das mondas, do capim, muitas mulheres juntavam-se nas lavras, numa enorme barulheira, para se ajudarem mutuamente.
 

Para protegerem as culturas dos animais, javalis, macacos e pássaros, erguiam, em redor da plantação, paliçadas de paus e penduravam diversos objectos para produzirem ruídos ao sabor do vento.
 

Próximo da aldeia, mantinham pequenas sementeiras de amendoim e tabaco.
 

A agricultura era muito primitiva, não faziam a rotação de culturas e não utilizavam estrumes.

 

 

Os instrumentos de trabalho também eram escassos, havia uma pequeno machado / enxada (jimbo), um machado maior para o derrube de árvores e uma catana para o desbaste da mata e a abertura de covas.
 

 

A farinha de mandioca era obtida por métodos muito tradicionais.

  • Desenterravam os tubérculos quando estavam maduros, mas só os necessários;
  • Eram descascados;
  • Maceravam-nos no rio durante uns dias para perderem os componentes tóxicos;
  • Depois, ficavam estendidos ao sol, durante algum tempo, em pequenas esteiras sobre o telhado de colmo das casas;
  • Depois de cortados aos bocados, eram pisados com um pilão num grande almofariz de madeira (tchino); e
  • A farinha resultante era peneirada com a ajuda de um cesto tubular.

 

Depois destas operações, faziam por cozedura o funge, uma papa espessa com água que era constantemente mexida com uma colher de pau de cabo arredondado e terminada em forma de espátula (lerico(?)).

 


Quando as mulheres tiravam a panela do lume, continuavam a mexer aquela papa durante algum tempo, e era interessante vê-las a manterem a panela sempre segura com os pés.
 

 

Com as folhas tenras da mandioca ainda faziam uma espécie de esparregado, que era temperado com óleo de palma e gindungo, acalmavam as mordeduras de abelhas e as feridas da varicela. O pó que restava dos tubérculos depois de torrados servia de calmante e desinfectante para os ferimentos.


As maçarocas do milho, ainda na forma leitosa, eram comidas assadas. O milho depois de maduro era usado para fazerem bebidas, e só raramente era transformado em farinha.
 

O feijão, sempre cozido e temperado com óleo de palma, também acompanhava o funge.
 

A batata-doce, que eu tanto apreciava, era assada com a casca.

 


 

As frutas silvestres, as bananas maçã, o abacaxi e os maboques (laranjas do mato), os cogumelos, o mel, os ratos do campo, os gafanhotos, as lagartas das plantas e as formigas de asas também faziam parte da alimentação.

 

Normalmente faziam duas refeições, que eram realizadas quando tinham mais fome (nzala). A da manhã, era a mais simples, constituída por funge ou batata-doce, e a do fim do dia, a principal, era a mais completa.
 

Sobreviver era preciso, e, acreditem, era mesmo assim a dura lei da vida na selva!
 

Num alambique muito rudimentar, constituído por uma panela, tapada por metade de uma cabaça, de onde saia um tubo, tipo cano de água, a servir de serpentina e que atravessava um lata cheia de água fria, destilavam milho, mandioca e alguns frutos selvagens, que originavam em conjunto ou em separado uma aguardente a que davam o nome de Catchipembe.
 

O tabaco, plantado junto da aldeia, era largamente apreciado como rapé e para fumar. A mulher também fumava, usava um cachimbo simples e os homens cachimbos de água (mutopa).
 

Além do tabaco, cultivavam o muito divulgado cânhamo, que era mais conhecido por maconha ou liamba. Havia algumas plantações isoladas, que eram proibidas pelo posto administrativo, mas em nada eram controladas.

 

As plantas, que conheci, com a altura de um homem, tinham folhas médias e um pouco rendilhadas, davam flores esverdeadas e um fruto parecido com um grão. O cheiro, incaracterístico, era difícil de se esquecer quando se passava por perto. No final do período vegetativo a planta largava uma cola que era vendida para, noutros locais, a transformarem em haschich.

 

Localmente limitavam-se a fumar algumas folhas misturadas com tabaco, e só os mais viciados fumavam, a cola, os caules e os frutos triturados com as folhas, até lhe chamavam “Sá Num Zanga” (Senhor de que se gosta e não se consegue esquecer).

 

Os efeitos eram nefastos e muito tóxicos para a mente, transformando por completo homens ou mulheres.
 

Para terminar, resta-me uma pequena referência à preparação do fogo. Muitas vezes ainda era feito pelo homem, por fricção de dois pedaços de madeira encostados a uma espécie de lã de casca de árvore, de resto o uso dos fósforos ou do isqueiro a petróleo estavam totalmente generalizados.
 

A seguir - Afrodisíacos

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 20.12.09 às 22:45link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Pelo seu trabalho em casa e nas lavras, e pela maternidade, a mulher assumia uma função económica e social abrangente. Cabiam-lhe as tarefas mais árduas e uma posição importante na comunidade, qualificada e não deprimente, e nunca inferior à do marido como se poderia pensar inicialmente.
 

 

Era desde tenra idade que o seu casamento era ajustado. Durante a fase da infância, a sua educação processava-se no convívio da família. Na adolescência, já muito independente, em tudo, gozava de uma ampla liberdade sexual, concedendo os seus favores a quem lhe agradava. Depois, durante o noivado, tornava-se exigente na forma e na frequência das visitas, e como desejava ser presenteada pelo homem que será o seu futuro marido, caso contrário era esquecido.
 

 

Quando chega a primeira menstruação, retira-se para a casa das raparigas menstruadas onde aprende tudo o que uma mulher deveria saber (ler mais aqui).
 

Depois de pago o dote de casamento aos pais é colocada em casa do marido, assumindo dai em diante uma posição social importante e legitimada para uma união sexual reprodutiva.
 

A nova fase da vida da mulher muda completamente, e é feita de inúmeras atribulações, onde até as relações sexuais e os contactos com o marido lhe serão dispensados à vez ou por turnos.

 


O casamento, que era indissolúvel, podia ser interrompido pela morte, pelos maus tratos ou pela esterilidade da mulher.


Perante a esterilidade feminina, Sá Moço dizia: - Mulher infecunda é mulher moribunda, mas… em muitos casos é o marido, o responsável, que, pelo excesso de mulheres, a idade avançada ou a incapacidade nas suas faculdades, fica inapto para a sua acção procriadora.

 

Por isso, é frequente, devido ao desejo de maternidade, que prevalece sobre qualquer outro sentimento, arranjar um homem, com ou sem o conhecimento do marido, para lhe dar os filhos desejados.
 

A mulher era sempre desejada, por dar a vida, e ser a obreira da família e do poder económico, mas também era temida, por na menopausa ter mau humor e a acharem com poderes maléficos, e daí a considerarem, algumas vezes, uma feiticeira.
 

A seguir - A alimentação

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 18.12.09 às 17:38link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

 

O quioco atribuía à infidelidade da mulher, o termo sedução.
 

O adultério, em certas condições, até era bem tolerado, porque era, muitas vezes, o próprio marido que contribuía para a mulher se tornar adúltera, não só por algum abandono declarado mas também pelo proveito material que podia tirar disso.
 

Havia casos, em que homens idosos, rodeados por várias mulheres, duas ou três muito novas, longe de serem a figura do marido ultrajado, aproveitavam-se da situação para aumentarem os seus proveitos, naturalmente, oriundo, delas seduzirem ou deixarem-se seduzir.
 

Noutros casos, o desejo de descendência era tão grande que o próprio marido consentia o adultério e muitas vezes com um homem indicado por ele. Este, porém, não tinha qualquer direito sobre a mulher e nem estava obrigado a entregar qualquer contribuição material.
 

Na região do Alto Chicapa, para além de um ou outro caso sazonal vindo de fora, não havia comércio sexual, como em Luanda ou em Henrique de Carvalho, havia sim a tal sedução ou até, talvez, um favor recebido sem pagamento predefinido, onde, no fim, entre sensatos, nunca deveria ficar esquecida a troca material pela utilização do corpo da mulher ou… até do homem.
 

A sedução era frequente e quase sempre banalizada, mas não se pense que a moralidade estava ausente, pelo contrário haviam muitos valores de vida, impossíveis de ser avaliados à luz do pensamento e da mentalidade europeia.
 

Nos casos mais complicados, que eram raros, o adultério era encarado como um roubo, e, como tal, o ladrão tinha de indemnizar o roubado com um pagamento em dinheiro, gado ou outros utensílios.
 

Contou-me o Sá Moço, que em tempos, antes de a tropa chegar, havia o costume frequente da troca mútua das mulheres, por uma ou mais vezes, entre dois casais.
 

Efectivamente, passados tantos anos… nada é assim tão diferente.

 

A seguir - A mulher quiôca
 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 16.12.09 às 00:35link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Naquela época e na região da Lunda era normal a pluralidade de uniões, em família, de um homem com várias mulheres, onde os mais novos tinham três ou quatro, e os mais velhos, e alguns sobas, chegavam aos dezasseis casamentos.
 

Tive a sorte e o privilégio de conhecer um desses homens, “chefe” de uma grande família e de uma vasta prole, uma autêntica comunidade. Tinha uma idade avançada, era sábio e estava sempre sorridente. Vivia feliz, de uma forma imparável e jovial, parecia ser detentor de um segredo. Era apaparicado, pelas várias mulheres muito jovens, mesmo muito! Dizia sempre a sorrir: - Nenhuma tem razão de queixa!
 

Só por curiosidade, mas em sentido oposto, na região do Luatamba, Moxico, havia alguns casos de poliandria em que uma mulher vivia casada com dois ou três homens. Embora nunca tivesse contactado, de perto, com uma comunidade deste tipo, contavam que o primeiro marido era quem detinha todos os privilégios e direitos, e era, sempre, considerado o pai legal de todos os filhos.
 

Voltando à Lunda. A poligamia era o sistema familiar usual, onde, fosse qual fosse o número de mulheres do polígamo, havia, entre elas, uma, que era a preferida e mais confidente, a principal (muári), que usufruía um tratamento especial na gestão do lar, na vida do marido e no que vestia. As outras, as raparigas (tusula), eram tratadas em pé de igualdade nas relações sexuais, em parte do vestuário, nos trabalhos domésticos e nas lavras.

 


Dos, diversos, contactos, que tive ao longo de dois anos e meio de permanência, na região, percebi que a poligamia, não era só o sexo e os filhos, era o poder económico desenvolvido por cada uma das mulheres, era a aliança entre famílias e era a posição social do homem na comunidade.
 

Durante uma patrulha militar, no final de um dia, entrei em diálogo com o meu bom amigo e guia Sá Moço. Estava, numa prefeita contemplação do horizonte e perdido no tempo, a mascar raízes.


- Então Sá Moço, estás a comer raízes?
 

- Sim! É, só, remédio, para dar força! As mulheres esperam-me!
 

- Todas?
 

- Sim, todas! As mulheres são ciumentas e não se podem alterar ou adiar as visitas conjugais. Todas pedem para ser contempladas, de igual modo, com força, com as regras acordadas e com uma duração de quatro dias.
 

- E… quando o homem não pode, por doença ou está velho?
 

- Quando o homem está doente, a mulher, pelo casamento, está obrigada de fidelidade ao marido.
 

- Mas… quando não pode, mesmo… por ser velho?
 

- Que há-de fazer uma mulher nova, a quem a família entregou a um marido idoso com mais mulheres, filhas da mesma idade e, muitas vezes, já incapacitado de cumprir os seus deveres de progenitor?
 

A seguir - Adultério

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 13.12.09 às 23:22link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

O homem e a mulher só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade, os filhos eram o principal alvo.


Quando a mulher engravidava, toda a sua vida se alterava. Era envolvida por muitos cuidados, como o repouso e o fim do trabalho nas lavras. Às refeições, passava a ingerir seivas fortificantes e mastigava raízes anti-vermes.


No início da gravidez, consultava o adivinho (taí) para saber quais as cerimónias e os amuletos protectores que eram necessários para o bom desenvolvimento e saúde do feto e… ficar longe de feitiços e maus-olhados.
 

As relações sexuais e os contactos com os homens também eram suspensos.
 

Afirmavam, que, durante a gravidez, a mãe não podia comer certos alimentos, como, entre outros, a carne de porco, senão o filho nasceria com a cara em formato de porco.
 

No último mês da gestação a mulher mudava-se para uma casa mais pequena, mais rudimentar, ou para a cozinha onde ia ter a criança.
 

Devido a medos, a uma deficiente gestação ou outros motivos que nunca cheguei a perceber, havia casos, em que as mulheres iam ter o filho, completamente sozinhas, fora da aldeia, em plena mata, e apenas encostadas ou agarradas a uma árvore. Lidei, acidentalmente, com uma situação destas, na orla da pista de aviação do Alto Chicapa, onde o gemido de uma mulher e o choro de uma criança me atraíram.

 

 

Não sabia o que estava a acontecer, mas era algo diferente.

Com alguma irresponsabilidade, e totalmente desprotegido, aproximei-me.

Felizmente, era uma criança a acabar de nascer bem e uma super mãe a fazer todo o trabalho, parto e pós parto.

 

A minha acção foi paupérrima e, acima de tudo, envergonhada, mas aquela mãe só me deu liberdade para chamar a primeira mulher, que visse na aldeia dos GEs.

 


Quando os partos ficavam muito difíceis e eram assistidos por uma mulher mais velha (uma espécie de parteira), esta introduzia na vagina da parturiente folhas de uma árvore, para ajudar à dilatação, e ao mesmo tempo ia-lhe perguntando os nomes dos homens com quem tinha tido relações sexuais, além do marido, e insistia sempre para que não ficasse nenhum esquecido (ler mais em Missão Humanitária).


Acreditavam que as dificuldades do parto eram devidas às muitas relações extra conjugais e que a expulsão do feto não seria possível sem a indicação de todos os homens com quem tinham mantido relações.
 

A seguir ao parto, a mulher bebia uma infusão de folhas com propriedades cicatrizantes, fazia lavagens vaginais com a água de folhas de mandioca e tomava vários banhos frios no rio.

 


Sobre o leite materno, foi-me contado: Quando uma mãe não tinha ou lhe faltava o leite, a criança era alimentada por uma outra mulher da família ou da aldeia com filhos latentes e se isto não fosse possível, uma das outras mulheres do marido ingeria umas raízes, que em dois dias lhe provocava o aparecimento de leite.
 

 

Era engraçado ver estas crianças a acompanharem a mãe para todo o lado e em todos os trabalhos, repousando sobre as suas costas com os seios sempre à sua disposição, logo que o desejavam.
 

 

A mulher revia-se nos filhos, sempre com um acompanhamento e carinho inigualável desde o berço até à sua vida de adulto, num círculo inquestionável, que nenhuma vicissitude podia romper.

 

Os valores familiares deste mundo quioco eram muito fortes, só se sentiam realizados socialmente quando contribuíam para o aumento da comunidade!
 

A seguir - Poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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publicado por Alto Chicapa, em 06.12.09 às 18:55link do post | favorito

Alto Chicapa 1972/74

 

Começando pelo fim do texto, um casamento era um acordo entre duas famílias.
 

Relativamente a este tema o Sá Moço era muito afirmativo, orgulhava-se da sua progenitura e contava-me com alegria: - Quando nasceu o meu primeiro filho mandei reservar uma filha, a nascer, de um casal amigo para que os nossos laços de amizade ficassem mais fortes com o casamento deles. No final da conversa, o Sá Moço ainda acrescentou: - Mulher que não se compra, é prostituta!
 

Entre os quiôcos, o casamento era polígamo e efectuado através da compra da mulher. Nunca era um acto comercial nem dava o direito ao marido a uma futura venda, era, apenas, o processo de transferência da tutela dos pais, a permissão de coabitação, de gerar descendência, tomar conta do lar e dos filhos, trabalhar nas lavras e ao longo do tempo ganharem consideração e respeito mútuo.
 

Tudo começava com uma espécie de noivado.
 

Quando a noiva vivia em casa dos pais o futuro marido fazia-lhe visitas assíduas para que a sua presença futura não fosse a de um estranho. Oferecia prendas à noiva e à família.
 

Quando, esta, coabitava com o homem prometido passava o tempo a ajudar as outras mulheres, em pequenos trabalhos, e a visitar com regularidade os familiares da sua aldeia, onde ficava algumas semanas. Nestas ocasiões, aconteciam, com naturalidade, algumas ligações amorosas com um qualquer rapaz do seu agrado, sem que isso tivesse alguma importância para o futuro marido.
 

As núpcias, que começavam a seguir à primeira menstruação da mulher e só depois de o homem ter feito a entrega do valor da compra aos pais, era a cerimónia decorrente da colocação da noiva em casa do marido (podem ler mais detalhes em: A iniciação das raparigas).
 

A comunidade organizava um cortejo nupcial, com a noiva, os seus familiares e convidados, os familiares do noivo e várias crianças, até à nova residência na aldeia do marido, onde era recebida em festa, pintada com caulino e sentada sobre uma esteira à porta da casa. De seguida, juntavam-se os dois, sobre a esteira, onde se marcavam mutuamente com uma massa branca na fronte e no peito.

 

A noiva depois declarar, para que todos a ouvissem, que tinha atingido a idade adulta, tocava na perna do marido e iniciava um bailado nupcial, marcando o ritmo com o ondular do corpo, dirigindo-se sempre para dentro de casa.
 

O toque na perna era interpretado por todos como o reconhecimento do marido, a união no lar e a entrega sexual.
 

Na primeira noite, em pleno batuque, os noivos ficavam na casa, onde já dormiam juntos.

 

Como não podiam ter relações sexuais nas duas primeiras noites, faziam-se acompanhar por uma criança para dormir no meio deles.
 

No dia seguinte comiam uma refeição de frango, sem nunca partirem ou trincarem os ossos, numa representação quase pública em que a devoção, à fecundidade da mulher e ao respeito mútuo do casal, era apoiada e confirmada por todos.
 

Como não acompanhei de perto estes momentos ou não lhes dei a devida atenção, Sá Moço teve o cuidado de me alertar para a importância deste facto e acrescentou: - Esta é a única vez que marido e mulher comem juntos, daí em diante comem separados. Primeiro o homem e depois a mulher e os filhos, quando os houver. Comer juntos representa ser de descendência comum e estarem em consanguinidade, o que os impede de terem relações sexuais por ser equivalente a uma relação incestuosa.
 

Na terceira noite, depois de o homem ter prestado culto aos antepassados comuns, colocava uma pena do frango entre os cabelos. Quando a mulher o imitava, estava a dizer-lhe que a partir daquele momento ficava pronta para uma intensa relação sexual, que, com toda a naturalidade, se prolongava por três a quatro dias, sem saírem da casa.
 

Este casamento, acordado inicialmente por duas famílias amigas, que passava pela fase de compra e pelo conhecimento e respeito mútuo da mulher e do homem, só seria confirmado após o nascimento do primeiro filho.
 

A seguir - O nascimento

Depois - A poligamia

 

Carlos Alberto Santos

 


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